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Entrevista realizada por Kellen Vieira

Em alusão ao Dia Internacional da Mulher, queremos evidenciar histórias de mulheres negras que, ao longo da sua trajetória, lutam pela mitigação das iniquidades adensadas sob o cotidiano da população negra no país. Conversamos com Maria Nely Velozo, mulher negra que veio para Brasília na década de 70 construir sua própria história.

Maria Nelys Carvalho Veloso é uma mulher negra, mãe de três filhos: Cassandra, Leandro e Beatriz. Cozinheira de profissão, já cozinhou para diversos políticos, incluindo o presidente Lula. Atualmente é artesã  e empresária da Abayomi Artefatos.

Conte-me um pouco sobre você. Quantos anos você tem? Onde você nasceu? Onde você mora atualmente? Quais seus projetos atuais?

Eu me chamo Maria Nelys Carvalho Veloso, eu nasci no Maranhão e eu tenho 62 anos e vim para Brasília com 14 anos. Cheguei aqui e vim pra trabalhar na casa de uma pessoa. Daí eu trabalhei, mas eu nunca gostei de trabalhar pros outros, mas mesmo assim eu continuei. Quando eu saí desse lugar, eu fui trabalhar num hotel como camareira e nesse meio tempo eu falei assim: “não eu não nasci para lavar banheiro” porque hoje em dia é muito difícil uma família negra ser de boa situação, sempre foi, mas eu nasci em uma família muito bem situada, meus pais tinham muito recurso. 

Infelizmente não deu certo porque minha mãe separou do meu pai e eu tive que vir pra cá. Tá, e aí eu cheguei aqui [Brasília], mas eu nunca me conformei assim, porque tem pessoa que se conforma com qualquer coisa, eu não! Fui trabalhar nesse hotel como camareira, mas ai eu falei: “não, eu não vou ficar lavando banheiro a vida toda.” Ai, no meio tempo, eu era camareira à noite, e no dia eu fazia faxina nas casas para poder complementar o salário.

Eu já tinha meus filhos e eu tinha que manter. E eu fui e fiz um curso de telefonista nesse meio tempo. Eu trabalhava de manhã na casa das pessoas, quando dava meio dia eu entrava no curso, e saía às três e meia. Fiz o curso de telefonista. Quando terminei, fui estagiária num hotel. Apart hotel. 

E aí eu consegui meu primeiro emprego como telefonista, e depois eu consegui passar num outro hotel, e mais um intermediário. E eu tinha três empregos de telefonista. Eu trabalhava de seis da tarde à meia noite em um, e de meia noite às seis da manhã em outro. E de duas horas fazia um intermediário até às seis da tarde. E trabalhei nesse lugar por 15 anos. E, sem ter ninguém para ficar em casa com as crianças e tal, eu falei assim: “não, eu vou começar a pedir conta”. Pedi conta de dois hotéis e fiquei onde eu tava mais tempo e fui trabalhar com comida. 

Sem fazer curso – nunca fiz curso nenhum em culinária – mas só em ver assim, na televisão, eu fui fazer congelados. Mas eu tinha tanta encomenda que eu não dava nem conta. E de lá pra cá foi assim. Daí comecei a fazer comida. Comecei a fazer jantares.

Meu meio era mais o meio político, né? Trabalhei sempre para político. Tanto trabalhava aqui, quanto em São Paulo. E ia daqui para São Paulo fazer ceia de Natal, fazer aniversário, sabe? Daí eu vinha, até que aconteceu de eu ter o AVC, né?

E quando eu tive o AVC, eu tava em São Paulo, trabalhando. Daí voltei de cadeira de rodas e aí fiquei nessa. Mas aí, sempre assim, porque eu fiquei paralisada. Né? Eu fiquei de cadeira de rodas, mas eu me incomodava tanto com isso, que aí eu comecei.

Eu sempre gostei de artesanato também. Eu comecei a costurar com alicate. Enfiava a agulha e puxava com alicate e fazia as coisinhas assim: devagarzinho.

E fazendo terapia. E lutando pra mim não me entregar, né? Porque, quando a gente tem AVC, se você não tiver uma cabeça bem boa, você se entrega e você morre.

É tanto, que o médico falou que ia passar um calmante pra mim tomar, e eu falei que não, que não queria, que meu calmante era o artesanato. E comecei a fazer sabão, e daí veio… Comecei a costurar e, foi indo, foi indo, e eu me tornei uma artesã. Mesmo costurando, o meu lado que funciona é o esquerdo, e essa mão aqui (mostra a mão direita) só complementa, né? Mas minha vida é essa e eu não me entrego!

Tudo bem, a gente fica triste, né? Como agora. Eu, esse tempo todinho, 40 anos, a gente sempre tem morado com todo mundo. Meus filhos, dia de domingo, era maior coisa pra mim fazer almoço, jantar, essas coisas. E agora me sinto sozinha, e é difícil. Mas é isso. Bola para frente! A gente tem que pensar que amanhã é outro dia.

E atualmente meu projeto é a Abayomi. No entanto, pra mim está sendo muito difícil, por que pra mim, se tivesse uma pessoa para manusear a Abayomi… Eu não sei entrar na internet, fazer venda e postar. Então, fica difícil pra mim.

Mas pra mim, meu projeto é a Abayomi. Minha costura, né? Que eu gosto muito. É uma coisa que não me deixa ficar pensando. Sento aqui pra fazer minhas coisas, meu pensamento vai longe, né? E eu não fico pensando na tristeza. E eu não gosto de tristeza.

Como você chegou até o ramo da alimentação?

Eu sempre gostei de cozinhar. É gosto meu mesmo. Quando eu cheguei aqui, eu fui trabalhar numa casa, e eu não sabia. Que eu cheguei em Brasília, mas eu era de uma família bem sucedida, né? Então, minha mãe nunca chegou em mim e falou: “vem cá aprender a fazer um arroz”. Eu aprendi de curiosidade. Mas aí, quando eu cheguei aqui, eu vi que eu tinha que fazer.

A primeira receita que eu fiz foi um bife à milanesa, que minha colega escreveu a receita num papel de pão, porque eu perguntei a ela como fazia. E eu sempre gostei, assim, eu não sabia como fazer, mas eu sabia o que era bom. Ai eu fiz, e essa moça gostou muito. E, às vezes, eu queria fazer um lanche, e eu não sabia muita coisa. E aí eu ia na padaria e comprava a massa de pão lá na 309 sul. Na 109 eu ia na comercial. E a padaria vendia para a gente a porção de massa pronta. 

Ai ele me vendia aquela massa pronta. Daí, na parte da tarde, eu fazia pizza, um pão recheado e o pessoal falava: “nossa”! Mas ninguém nunca me ensinou. Eu que ia. Eu nunca fiz curso de culinária. Nunca, nunca, nunca. No entanto, eu me tornei uma banqueteira. Saía daqui pra fazer almoço em São Paulo.

Fazia aniversário, ceia de natal. Eu saía daqui no dia 23, e chegava lá no dia 24, só para fazer a ceia de natal, e dia 25 eu vinha embora. Minha vida era essa. Uma correria. Eu fazia congelados também. No meio político, eu já cozinhei até pra presidente!

Eu nunca fiz curso. Eu sempre fui autodidata em tudo que eu ia fazer. E assim, como o artesanato, ninguém me ensinou. Eu sempre fiz tudo sozinha. Eu vejo uma coisa, eu vou lá e faço!

Quando eu era pequena, a minha professora de inglês morava em frente de mim. Tinha dia que eu sentava com meu livro de inglês e traduzia um monte de coisa, e ela falava: “nossa, mas quem te ensinou?” e eu falava: “ninguém”. Eu sempre fui assim, eu pegava uma coisa e eu aprendo sozinha. 

Conte-nos um pouco sobre seu trabalho, o que é esse desenvolvimento de alimentar outras pessoas e o que isso proporcionou a sua vida.

Muita coisa. Porque, eu trabalhando com culinária, a gente conseguiu comprar muitas coisas. Hoje eu não tenho. Mas eu já tive casa, apartamento, terreno, aí fui assim. O último terreno que nós compramos, que veio da culinária, foi o terreno do Lago Sul que a gente tinha. Mas assim, às vezes a gente faz as coisas sem pensar. Quando você não tem uma orientação de ninguém, você pensa que tá fazendo o certo, e quando a Cassandra tava na faculdade, e a gente ficou sem. O trabalho tava fraco, atrasou as parcelas, daí a gente vendeu lá para pagar as dívidas e ficamos sem o terreno. Até hoje ela fala disso.

Mas a culinária já me proporcionou muita coisa. E eu sempre gostei e gosto muito. Só que agora eu não posso fazer, porque estou nesse estado. Trabalhar, como eu trabalhava antes, que eu tinha que fazer, mexer com garçom, ajudante, e agora não dá mais. E era tudo na minha conta. A pessoa contratava o jantar, eu fazia orçamento tudo na minha conta. Desde o garçom, louça, tudo! 

Como você enxerga a importância do acesso à alimentação e se há relação disso com o racismo?

Eu sempre fui assim: desde que meus filhos são pequenos, a alimentação é muito importante. Desde a primeira, eu sempre fui exigente com isso. Pode perguntar a eles. Eu saia pra trabalhar, eu deixava ali toda a comida pronta: o feijão, a verdura, o suco. Sempre fui assim. E eu nunca gostei de coisa química. Eu sempre gostei de fazer o suco, entendeu? Eu sempre fui assim.

A alimentação da manhã e da noite, pra mim, são as mais importantes que existem e, a pessoa é o que come. Seu corpo responde a esse alimento, né? E eu sempre fui assim. E até mesmo pra fazer compras, seja aqui pra casa, ou para trabalho, eu sempre gostei do melhor. Eu não gosto de tapear e pensar assim: “ já que é pra você trabalhar”, não. Eu prefiro fazer o pior pra mim e o melhor pra trabalhar. 

Eu sempre gostei de coisa orgânica, sabe? Nunca gostei de muita química. Nunca gostei de remédio. E eu só tomo remédio agora, porque é o jeito. Mas eu nunca gostei.

Tem quatro anos que eu tive AVC. Antes disso, eu nunca tive em médico assim. Fui no médico só por causa de uma dor nos rins que eu tive da época que fui telefonista Mas assim, adoecer, viver no médico internada, nunca! Nem eu nem minhas crianças. Aqui de casa, nunca foi assim doentinho. Por que? Alimentação mais saudável. E eu sempre fui assim. E você sabe que o produto que tem agrotóxico ele não é saudável? Por isso é melhor o orgânico que é mais saudável.

Que mensagem você deixa para as mulheres mais novas que desejam trilhar caminhos semelhantes aos teus? 

Eu sempre pensei assim: quando eu comecei a trabalhar, eu, até porque a gente que é negro é mais difícil… Mais difícil não. É difícil. Então, eu, quando eu tava trabalhando num hotel, e eu sempre fui assim, quando eu to numa coisa, eu sou muito dedicada. E quando eu trabalhava como camareira, então veio um pessoal de São Paulo fazer aquelas coisas. Eles pegam o hotel pra mudar ele. Já viu, né? Tem até aqueles programas de TV que a gente vê que eles mudam o hotel todo pro hotel ter o orçamento melhor. Então, esses dois rapazes, depois que eles fizeram esse negócio lá, eles me indicaram como governanta, por que eu era muito eficiente. E, assim, tudo que eles precisavam, na hora eu já alcançava pra eles. E assim e dei tudo que eles precisavam. Eu tava ali pra servir em todo hotel. 

Como até hoje eu sei. Pra montar um hotel, eu sei de tudo. E aí eles me indicaram pra governanta e eu não fiquei sabendo. Eu soube disso depois. Mas disseram que não, porque, acho que isso foi nos anos 90, porque eu era negra. E eu não sabia e, tá, e aí passou, e outra vez eu fui fazer entrevista em um lugar, e eu não passei por que era negra. Porque a governanta vai no hotel e cuida desde cima até embaixo, da recepção até o último andar. E então, a governanta tem que tá na recepção. Então eu não podia, eles não deixavam por isso. Então, quando eu soube disso, eu comecei: “um dia eu vou trabalhar pra mim”.

Então eu acho assim; que a mulher, e acho que todas as pessoas que querem ganhar dinheiro, trabalha pra si. Porque, você trabalha pros outros, você enrica os outros e não você, e seu trabalho não é reconhecido. Principalmente, quando você é negro, não é reconhecido, né? Então, eu, o que eu deixo é isso: se você puder aprender, aprenda, pra poder trabalhar pra você. Aí, sim, você vai ganhar dinheiro e ser uma pessoa bem sucedida. Agora? Trabalhar pros outros? Não. Eu não sou de acordo com trabalhar pros outros.