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Entrevista realizada por BRUNA DE OLIVEIRa

Em alusão ao Dia Internacional da Mulher, queremos evidenciar histórias de mulheres negras que, ao longo da sua trajetória, lutam pela mitigação das iniquidades adensadas sob o cotidiano da população negra no país. Conversamos com Maria Conceição, mulher uma baiana de nascimento e uma paulista de coração.

Aos 60 anos ingressou numa graduação de Gastronomia e reinventou sua trajetória profissional graças a sua proximidade com as receitas antigas de sua mãe. Maria é bacharel em Gastronomia, atua como cozinheira e pesquisadora da cozinha negra e afro-brasileira. Ministra oficinas em quilombos como mediadora e busca recuperar receitas que atuam na reafirmação da memória de seus antepassados, recuperação da autoestima e fortalecimento do protagonismo às diásporas negras na cozinha.

Conte-me um pouco sobre você. Quantos anos você tem? Onde você nasceu? Onde você mora atualmente? Quais seus projetos atuais? Como você chegou até o tema da alimentação?

Eu tenho 66 anos. Eu nasci em Itabuna, na Bahia. Vim para São Paulo com 8 anos e desde então eu moro aqui [em São Paulo]. Eu carrego a marca do dendê no coração, mas hoje eu me considero paulista. Eu gosto dessa cidade. Eu gosto dos estranhamentos dessa cidade. Quando você faz e tem sua própria “tribo” fica tudo tão mais fácil aqui. Tenho amigos tão dedicados. Eu não penso em morar em outro lugar do mundo que não seja São Paulo, por causa dessa afetividade que a cidade me permitiu.

Há dez, quinze anos atrás, minhas amigas traziam um monte de roupas da África… Aqueles chapéus, aquelas roupas… Hoje, eu não vejo ninguém mais fazer isso. Mas, assim, eu ficava decepcionada, porque eu saía pela cidade vestida com aquelas roupas e ninguém nem olhava para mim, eu só mais uma pessoa da cidade, com estilo próprio, meu jeito…

Eu sempre fui militante de esquerda. Fiz parte daquela galera que iniciou as discussões sobre questões étnico-raciais do movimento negro de São Paulo. Fiz parte da criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em São Paulo. O meu núcleo era o de Pinheiros. Fiz parte do nascimento da CUT.

Eu estudava muito, lia muito, tanto que uma amiga minha brincava que eu era a primeira pessoa que antes de entrar na faculdade já tinha um artigo publicado.

Em um momento da minha vida, minha mãe tinha ficado doente, em uma condição não muito legal. Um amigo, o poeta Hamílton Faria de Curitiba, me aconselhou a anotar todas as receitas de minha mãe. Aí eu iniciei o processo de recolher todas as receitas de minha mãe, mas também todas as histórias de mulheres na cozinha. A partir disso, publiquei um artigo sobre mulheres negras na cozinha.

Aos 60 anos, eu decidi deixar de ser autodidata e, logo, entrei na faculdade. Me formei em Gastronomia, continuei trabalhando e nunca deixei de realizar pesquisas. Diante disso, resolvi fazer uma pós-graduação nas áreas que eu mais tinha afinidade: História, Cultura e Gastronomia. Sempre gostei muito de fontes, de pesquisar. Eu não entendo “a receita pela receita”. Gosto de “ir fundo” quando eu faço uma receita. Gosto de pesquisar a origem dessa receita, de onde ela veio, como é a sua história cultural…

Enquanto eu escrevia o livro de receitas de minha mãe e as histórias de mulheres negras na cozinha, eu conheci o movimento negro. Eu me identificava com as discussões que estavam sendo apresentadas pelo movimento. Tudo isso deu um ganho maior de qualidade para as minhas pesquisas posteriores.

Em outro momento da minha vida, eu me deparei com uma “postagem” (sic) sobre Slow Food, da Neide Rigo, e entrei para esse movimento também. Mergulhei e não saí mais.

Assim, a sua própria história com a comida não deve ser única, é preciso mergulhar em várias coisas. Por exemplo, é apaixonante o Movimento Sem Terra (sic)… Tem que olhar para eles e ter esse entendimento que a comida, a cozinha, ela não é só memória, não é só história, cultura… Ela é política também. Tudo isso está no meu panelão.

Existem marcas africanas na culinária brasileira? Se sim, quais são elas?

Sim. Não há como questionar. A culinária africana permeia a cozinha brasileira. Ela é uma forte marca na cozinha brasileira. Na cozinha de santa está impregnada a culinária africana. Vejo-a também impregnada na cozinha dos quilombos, que é de uma pureza incrível. Quando a  gente fala em cozinha brasileira, há muita coisa que por uma questão de modismo a gente não vê mais… E as coisas mudam conforme a chegada de novas modas. A cozinha brasileira é feita de pratos exuberantes. A gente não vê mais rabada, bucho… Um dia fui procurar a rabada para comprar e estava 40 reais o quilo. Ela se valorizou à medida que passou a ser rotulada de gastronomia.

Eu vejo também na cozinha vegana o DNA africano, ainda que o movimento vegano tenha ficado muito marcado pela cozinha da elite branca. Mas tem elementos da cultura negra nela também. Ensopadinho de Ora Pro Nobis, comida de quintal, comida de brejo são preparos que sempre fizeram parte da vida das mulheres negras. Então, eu antevejo um renascimento da cozinha africana no movimento vegano.

Como foi para você entrar na faculdade com 60 anos?

Eu percebi uma certa discriminação etária. Quando se é mais velho, você é meio que deixado de lado. E eu perguntava muito. Sou muito perguntadeira. Criei várias situações com os professores. Muitos deles me odiavam por isso. Mas eu perguntava, porque via coisas que os jovens não viam. Quando eu não entendia, eu perguntava também. e os professores que me deixavam mais à vontade eu entendia os conteúdos mais facilmente. Eu me saí muito bem em matérias que eu não sabia nada. Quando se aprende e se entende, é uma coisa maravilhosa. 

Por um lado, foi bem puxado frequentar a faculdade. Eu saía de casa às 5 e meia. Pegava lotação com uma mala pesadíssima, como todo tipo de facas, utensílios… Eu ficava muito cansada. Houve um dia em que eu estava tão cansada que resolvi ir embora. Quando eu estava saindo, a professora me fez voltar e ficar. E outra vez, outra professora não permitiu que eu sentasse em um banquinho para descansar. Para elas, a cozinha é assim: militarizada. Mas não para mim. Elas viam a cozinha como um lugar rígido, militarizado… Acho isso uma ideia horrorosa. Eu não gosto disso. É como é nos mostrado nesses “reality show”, os chefes acabando com os alunos, humilhando-os. Eu acho isso uma falta de respeito. Enxergo nisso o autoritarismo, o fascimo.

Por outro lado, a pós-graduação foi bem gostosa. Fui apresentada a muitos autores. Conheci e li muitos textos. Foi bem legal.

Que mensagem você deixa para as mulheres mais jovens que desejam trilhar caminhos semelhantes aos teus?

O que eu tenho a dizer às mulheres negras mais jovens é para que esqueçam “o lugar de negro na cozinha”. O nosso lugar é outro, é no alto da cozinha. Eu acho muito legal ver mulheres negras cozinhando, se tornando e se intitulando chefs… Eu acho que as mulheres têm de ir para a cozinha; mas que isso seja feito tornando a cozinha outro lugar. E não esse lugar que nos escravizou, nos deteve, servindo ao patrão… As mulheres devem ir para a cozinha para criação, para se empoderar.

Se inspirem em mim. eu tenho só 10 anos na carreira de cozinheira. Eu tenho material de divulgação, tenho reportagem em jornal da Itália… Eu vou bem, obrigada. Nunca desistam. Olhem para mim, eu estou “aqui”.