O vício invisível: é hora de desistir da cafeína?
Traduzido por Eduardo Stigger
Este texto é uma tradução da matéria “The invisible addiction: is it time to give up caffeine?” publicada no The Guardian, em 06 de julho de 2021, e escrito pelo brilhante – e frequentemente citado aqui – Micheal Pollan. Acesse a matéria original aqui. A publicação deste texto tem o objetivo de complementar o conteúdo publicado no dia 14 de abril de 2022 sobre a história do café e como ele se tornou a bebida mais consumida no mundo, o texto Café: uma volta ao mundo. Esta matéria trata das dinâmicas sociais em torno do café e levantando questionamentos sobre a nossa relação atual com a bebida. As opiniões, em sua totalidade, não representam as opiniões da Crioula – Curadoria Alimentar. As afirmações e opiniões são de responsabilidade da equipe autora da matéria.
A cafeína nos torna mais energéticos, eficientes e rápidos. Mas nos tornamos tão dependentes que precisamos dela para apenas fazer o básico.
por Michael Pollan
Depois de anos começando o dia com um café grande de manhã, seguido de vários copos de chá-verde em intervalos, e um eventual cappuccino depois do almoço, parei de cafeína, de uma vez só. Não era algo que eu particularmente queria fazer, mas relutantemente cheguei à conclusão de que a matéria que eu estava escrevendo exigia isso. Vários dos especialistas que eu estava entrevistando sugeriam que eu realmente não conseguia entender o papel da cafeína na minha vida – seu poder invisível, mas penetrante – sem largá-la e depois, presumivelmente, voltar. Roland Griffiths, um dos principais pesquisadores do mundo de drogas que alteram o humor, e principal responsável por obter o diagnóstico de “abstinência de cafeína” incluído no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), a bíblia dos diagnósticos psiquiátricos, me disse que não havia começado a entender seu próprio relacionamento com a cafeína até que parou de usá-la e realizou uma série de autoexperimentos. Ele me incentivou a fazer o mesmo.
Para a maioria de nós, ser “cafeinado” em um grau ou outro simplesmente se tornou o básico da consciência humana. Cerca de 90% dos humanos ingerem cafeína regularmente, tornando-a a droga psicoativa mais usada no mundo e a única que damos rotineiramente às crianças (geralmente na forma de refrigerantes). Poucos de nós sequer pensam nisso como uma droga, muito menos no nosso uso diário como um vício. É tão difundido que é fácil ignorar o fato de que ser cafeinado não é uma consciência básica, mas, na verdade, um estado alterado. Acontece que é um estado que praticamente todos nós compartilhamos, tornando-o invisível.
Os cientistas listaram, e eu pontualmente notei, os sintomas previsíveis da abstinência de cafeína: dor de cabeça, fadiga, letargia, dificuldade de concentração, diminuição da motivação, irritabilidade, angústia intensa, perda de confiança e disforia. Mas, sob esse rótulo falsamente leve de “dificuldade de concentração” esconde-se nada menos que uma ameaça existencial à obra de um escritor. Como você pode esperar escrever algo quando não consegue se concentrar?
Adiei o máximo que pude, mas finalmente chegou o fatídico dia. De acordo com os pesquisadores que entrevistei, o processo de abstinência na verdade começou durante a noite, enquanto eu dormia, durante o “vale” no gráfico dos efeitos diurnos da cafeína. A primeira xícara de chá ou café do dia possui a maior parte de seu poder – a alegria! – não tanto pelas suas propriedades eufóricas e estimulantes, mas pelo fato de estar suprimindo os sintomas emergentes da abstinência. Isso faz parte da insidiosidade da cafeína.
Seu modo de ação, ou “farmacodinâmica”, combina tão perfeitamente com os ritmos do corpo humano, que a xícara de café da manhã chega bem a tempo de evitar a angústia mental iminente desencadeada pela xícara de café de ontem. Diariamente, a cafeína se propõe como a solução ideal para o problema que a cafeína cria.
Na cafeteria, em vez do meu habitual “semi-cafeinado”, pedi uma xícara de chá de menta. E nesta manhã, aquele agradável clarear da névoa mental que a primeira dose de cafeína traz nunca chegou. A neblina caiu sobre mim e não se moveu. Não é que eu me sentisse mal – não cheguei a ter uma forte dor de cabeça – mas durante todo o dia senti uma certa tontura, como se um véu tivesse descido no espaço entre mim e a realidade, uma espécie de filtro que absorvia certos comprimentos de onda de luz e som.
Consegui trabalhar um pouco, mas distraidamente. “Sinto-me como um lápis sem ponta”, escrevi em meu caderno. “Coisas ao redor se intrometem e não serão ignoradas. Não consigo me concentrar por mais de um minuto.”
Ao longo dos dias seguintes, comecei a me sentir melhor, o véu foi levantado, mas ainda não era eu mesmo, nem o mundo. Nesse novo normal, o mundo parecia mais monótono para mim. Eu parecia mais maçante, também. As manhãs eram as piores. Cheguei a ver como a cafeína é essencial para o trabalho diário de nos juntar novamente após o cair da consciência durante o sono. Essa reconsolidação do eu levou muito mais tempo do que o normal e nunca pareceu completa.
A familiaridade da humanidade com a cafeína é surpreendentemente recente. Mas não é exagero dizer que essa molécula refez o mundo. As mudanças provocadas pelo café e pelo chá ocorreram em um nível fundamental – o nível da mente humana. O café e o chá inauguraram uma mudança no clima mental, aguçando as mentes que estavam enevoadas pelo álcool, libertando as pessoas dos ritmos naturais do corpo e do sol, tornando possíveis novos tipos de trabalho e, sem dúvida, novos tipos de pensamento também.
No século 15, o café era cultivado no leste da África e comercializado em toda a península arábica. Inicialmente, a nova bebida era considerada um auxiliar de concentração e usada pelos Sufis, no Iêmen, para evitar que cochilassem durante suas observâncias religiosas. (O chá também começou como um pequeno auxiliar para os monges budistas que se esforçavam para permanecer acordados durante longos períodos de meditação.) Em um século, cafeterias surgiram em cidades de todo o mundo árabe. Em 1570 havia mais de 600 deles apenas em Constantinopla, e eles se espalharam para norte e oeste com o império otomano.
O mundo islâmico nessa época era, em muitos aspectos, mais avançado que a Europa, em ciência, tecnologia e em aprendizado. É difícil provar que esse florescimento mental tenha relação com a prevalência do café (e a proibição do álcool), mas, como argumentou o historiador alemão Wolfgang Schivelbusch, a bebida “parecia ser feita sob medida para uma cultura que proibia o consumo de álcool e deu origem à matemática moderna”.
Em 1629, os primeiros cafés da Europa, inspirados nos modelos árabe e turco, surgiram em Veneza, e o primeiro estabelecimento desse tipo na Inglaterra foi aberto em Oxford em 1650 por um imigrante judeu. Chegaram a Londres pouco depois e proliferaram: em poucas décadas havia milhares de cafés em Londres; no seu auge, um para cada 200 londrinos.
Chamar os cafés ingleses de um novo tipo de espaço público não é o suficiente. Se pagava um centavo pelo café, mas a informação – na forma de jornais, livros, revistas e conversas – era gratuita. (Os cafés eram muitas vezes referidos como “universidades de um centavo”.) Depois de visitar cafés de Londres, um escritor francês chamado Maximilien Misson escreveu: “Você tem notícias de todas as formas lá; Você tem uma boa lareira, junto à qual pode sentar-se o tempo que quiser: Você tem café; você encontra seus amigos para a transação de negócios, e tudo por um centavo, se você não quiser gastar mais.”
As cafeterias de Londres se distinguiam umas das outras pelos interesses profissionais ou intelectuais de seus clientes, o que acabou por lhes dar identidades institucionais específicas. Assim, por exemplo, comerciantes e homens com interesses em transporte marítimo reuniam-se no Lloyd’s Coffee House. Lá você poderia saber quais navios estavam chegando e partindo, e comprar uma apólice de seguro para sua carga. A Lloyd’s Coffee House acabou se tornando a corretora de seguros Lloyd’s de Londres. Tipos eruditos e cientistas – conhecidos então como “filósofos naturais” – reuniram-se no Grecian, que se tornou intimamente associado à Royal Society; Isaac Newton e Edmond Halley debateram física e matemática lá, e diz-se que uma vez dissecaram um golfinho no local.
A conversa nos cafés londrinos frequentemente se voltava para a política, em vigorosos exercícios de liberdade de expressão que provocaram a ira do governo, especialmente após a restauração da monarquia em 1660. Charles II, preocupado com a possibilidade de conspirações serem organizadas nos cafés, decidiu que os lugares eram fomentadores perigosos da rebelião que a coroa precisava suprimir. Em 1675, o rei decidiu fechar os cafés, alegando que os “relatos falsos, maliciosos e escandalosos” que deles emanam eram uma “perturbação do sossego e da paz do reino”. Como tantos outros compostos que alteram as qualidades da consciência nos indivíduos, a cafeína era vista como uma ameaça ao poder institucional, que se movia para suprimi-la, em um prenúncio das guerras contra as drogas que viriam.
Mas, a guerra do rei contra o café durou apenas 11 dias. Charles descobriu que era tarde demais para reverter a maré da cafeína. Àquela altura, o café era um elemento tão importante na cultura e vida cotidiana inglesa – e tantos londrinos importantes haviam se tornado viciados em cafeína – que todos simplesmente ignoraram a ordem do rei e continuaram bebendo café tranquilamente. Com medo de testar sua autoridade e não encontrá-la, o rei silenciosamente recuou, emitindo uma segunda proclamação revertendo a primeira “por consideração principesca e compaixão real”.
É difícil imaginar que esse crescimento político, cultural e intelectual que borbulhou nos cafés da França e da Inglaterra no século 17 poderia ter se desenvolvido em uma taverna. O tipo de pensamento mágico que o álcool patrocinava na mente medieval começou a dar espaço a um novo espírito racionalista e, um pouco mais tarde, ao pensamento iluminista.
O historiador francês Jules Michelet escreveu: “O café, a bebida sóbria, o poderoso alimento do cérebro, que, ao contrário de outros destilados, aumenta a pureza e a lucidez; café, que limpa as nuvens da imaginação e seu peso sombrio; que ilumina a realidade das coisas de repente com o clarão da verdade”.
A ver, com clareza, “a realidade das coisas”: esse era, em poucas palavras, o projeto racionalista. O café tornou-se, junto com o microscópio, o telescópio e a caneta, uma de suas ferramentas indispensáveis.
Após algumas semanas, as deficiências mentais da abstinência diminuíram e eu pude mais uma vez pensar de forma coerente, manter uma abstração em minha cabeça por mais de dois minutos e afastar os pensamentos periféricos do meu campo de atenção. No entanto, continuei a me sentir mentalmente um pouco atrasado, especialmente quando na companhia de bebedores de café e chá, o que, logicamente, estava o tempo todo e em todos os lugares.
Eis do que eu sentia falta: do jeito que a cafeína e seus rituais costumavam ordenar meu dia, especialmente pela manhã.
Os chás de ervas – que quase não são psicoativos – não têm o poder do café e do chá para organizar o dia em um ritmo de picos e vales energéticos, à medida que a maré mental da cafeína diminui e flui. A onda da manhã é uma bênção, obviamente, mas também há algo reconfortante na maré vazante da tarde, que uma xícara de chá pode reverter suavemente.
Em determinado momento, comecei a me perguntar se talvez fosse tudo coisa da minha cabeça, essa sensação de que eu havia caído um degrau mental desde que parei de tomar café e chá. Então decidi olhar para a ciência, para aprender o que, se é que existe, o aprimoramento cognitivo pode realmente ser atribuído à cafeína. Encontrei vários estudos realizados ao longo dos anos relatando que a cafeína melhora o desempenho em uma série de medidas cognitivas – de memória, foco, estado de alerta, vigilância, atenção e aprendizado. Um experimento feito na década de 1930 descobriu que os jogadores de xadrez com cafeína tiveram um desempenho significativamente melhor do que os jogadores que se abstiveram. Em outro estudo, usuários de cafeína concluíram uma variedade de tarefas mentais mais rapidamente, embora cometessem mais erros; como um artigo colocou em seu título, as pessoas que consomem cafeína são “mais rápidas, mas não mais inteligentes”. Em um experimento de 2014, indivíduos que receberam cafeína imediatamente após aprenderem um novo conteúdo memorizaram melhor do que os indivíduos que receberam placebo. Testes de habilidades psicomotoras também sugerem que a cafeína nos dá uma vantagem: em exercícios de direção simulada, a cafeína melhora o desempenho, especialmente quando o sujeito está cansado. Também melhora o desempenho físico em métricas como contra-relógio, força e resistência muscular.
É verdade que há motivos para desconfiar um pouco dessas descobertas, mesmo porque esse tipo de pesquisa é difícil de ser bem-sucedida. O problema é encontrar um bom grupo de controle em uma sociedade em que praticamente todo mundo é viciado em cafeína. Mas o consenso parece ser de que a cafeína melhora o desempenho mental (e físico) até certo ponto.
Se a cafeína também aumenta a criatividade é outra questão, no entanto, e há algumas razões para duvidar disso. A cafeína melhora nosso foco e capacidade de concentração, o que certamente melhora o pensamento linear e abstrato, mas a criatividade funciona de maneira muito diferente. Pode depender da perda de um certo tipo de foco e da liberdade de deixar a mente livre do pensamento linear.
Psicólogos cognitivos às vezes falam em termos de dois tipos distintos de consciência: consciência holofote, que ilumina um único ponto focal de atenção, tornando-o muito bom para o raciocínio, e consciência lanterna, na qual a atenção é menos focada, mas ilumina um campo de atenção mais amplo. As crianças pequenas tendem a exibir a consciência de lanterna; assim como muitas pessoas sob efeito de psicodélicos. Essa forma mais difusa de atenção se presta à divagação mental, à livre associação e à criação de novas conexões – tudo isso pode nutrir a criatividade.
Em comparação, a grande contribuição da cafeína para o progresso humano tem sido intensificar a consciência de holofotes – o processamento cognitivo focado, linear, abstrato e eficiente mais associado ao trabalho mental do que ao lazer. Isso, mais do que qualquer outra coisa, é o que fez da cafeína a droga perfeita não apenas para a era da razão e do Iluminismo, mas também para a ascensão do capitalismo.
O poder da cafeína de nos manter acordados e alertas, de conter a maré natural de exaustão, nos libertou dos ritmos circadianos de nossa biologia e assim, junto com o advento da luz artificial, abriu a fronteira da noite para a possibilidade de trabalho.
O que o café fez por clérigos e intelectuais, o chá logo faria pela classe trabalhadora inglesa. De fato, foi o chá das Índias Orientais – fortemente adoçado com açúcar das Índias Ocidentais – que alimentou a Revolução Industrial. Pensamos na Inglaterra como uma cultura do chá, mas o café, inicialmente a bebida mais barata, inicialmente foi dominante.
Logo depois que a Companhia Britânica das Índias Orientais começou a negociar com a China, o chá barato inundou a Inglaterra. Uma bebida que apenas os abastados podiam beber em 1700 era, em 1800, consumida por praticamente todos, da matrona da sociedade ao operário da fábrica
Suprir essa demanda exigia um empreendimento imperialista de enorme escala e brutalidade, especialmente depois que os britânicos decidiram que seria mais lucrativo transformar a Índia, sua colônia, em um produtor de chá, do que comprar chá dos chineses. Isso exigia primeiro roubar os segredos da produção de chá dos chineses (uma missão cumprida pelo renomado botânico e explorador de plantas escocês Robert Fortune, disfarçado de mandarim); confiscando terras de camponeses em Assam (onde o chá crescia de forma selvagem) e depois forçando os agricultores à servidão, colhendo folhas de chá do amanhecer ao anoitecer. A introdução do chá no ocidente foi uma questão de exploração – a extração de mais-valia do trabalho, não apenas em sua produção na Índia, mas também em seu consumo pelos britânicos.
O chá permitiu à classe trabalhadora britânica suportar longos turnos, condições de trabalho brutais e fome mais ou menos constante; a cafeína ajudou a acalmar as dores da fome, e o açúcar nela se tornou uma fonte crucial de calorias. (Do ponto de vista estritamente nutricional, os trabalhadores teriam ficado melhor com a cerveja.)
A cafeína do chá ajudou a criar um novo tipo de trabalhador, mais adaptado ao domínio da máquina. É difícil imaginar uma Revolução Industrial sem ela.
Então, como exatamente o café e a cafeína em geral nos tornam mais energéticos, eficientes e rápidos? Como essa pequena molécula poderia fornecer energia ao corpo humano sem calorias? A cafeína poderia ser o proverbial almoço grátis? Ou pagamos um preço pela energia mental e física – o estado de alerta, foco e resistência – que a cafeína nos dá?
Infelizmente, não existe almoço grátis. Acontece que a cafeína só parece nos dar energia. A cafeína funciona bloqueando a ação da adenosina, uma molécula que se acumula gradualmente no cérebro ao longo do dia, preparando o corpo para descansar. As moléculas de cafeína interferem nesse processo, impedindo que a adenosina faça seu trabalho – e nos mantendo alertas. Mas, os níveis de adenosina continuam a subir, de modo que, quando a cafeína é eventualmente metabolizada, a adenosina inunda os receptores do corpo e o cansaço retorna. Assim, a energia que a cafeína nos dá é emprestada, na verdade, e, eventualmente, a dívida deve ser paga.
Desde que as pessoas bebem café e chá, as autoridades médicas alertam sobre os perigos da cafeína. Mas até agora, a cafeína foi inocentada das acusações mais graves contra ela. O consenso científico atual é mais do que tranquilizador – na verdade, a pesquisa sugere que o café e o chá, longe de serem prejudiciais à nossa saúde, podem oferecer alguns benefícios importantes, desde que não sejam consumidos em excesso. O consumo regular de café está associado a uma diminuição do risco de vários tipos de câncer (incluindo mama, próstata, colo-retal e endometrial), doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2, doença de Parkinson, demência e possivelmente depressão e suicídio. (Embora altas doses possam produzir nervosismo e ansiedade, e as taxas de suicídio aumentam entre aqueles que bebem oito ou mais xícaras por dia.)
Minha análise da literatura médica sobre café e chá me fez pensar se minha abstenção poderia estar comprometendo não apenas minha função mental, mas também minha saúde física. No entanto, isso foi antes de falar com Matt Walker.
Um neurocientista inglês do corpo docente da Universidade da Califórnia, Berkeley, Walker, autor de Why We Sleep, é obstinado em sua missão: alertar o mundo para uma crise invisível de saúde pública, que é o fato de que não estamos dormindo o suficiente, o sono que estamos tendo é de má qualidade, e o principal culpado desse crime contra o corpo e a mente é a cafeína.
A cafeína em si pode não ser ruim para você, mas o sono que ela está roubando pode ter um preço.
De acordo com Walker, a pesquisa sugere que o sono insuficiente pode ser um fator chave no desenvolvimento da doença de Alzheimer, arteriosclerose, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca, depressão, ansiedade, suicídio e obesidade. “Quanto menos você dorme”, ele conclui sem rodeios, “mais curta sua expectativa de vida”.
Walker cresceu na Inglaterra bebendo grandes quantidades de chá preto, de manhã, ao meio-dia e à noite. Ele não consome mais cafeína, exceto pelas pequenas quantidades em sua xícara ocasional de descafeinado. Na verdade, nenhum dos pesquisadores do sono ou especialistas em ritmos circadianos que entrevistei para esta história consome cafeína.
Walker explicou que, para a maioria das pessoas, o “quarto de vida” da cafeína geralmente é de cerca de 12 horas, o que significa que 25% da cafeína de uma xícara de café consumida ao meio-dia ainda está circulando em seu cérebro quando você deita na cama à meia-noite. Isso pode ser o suficiente para destruir completamente seu sono profundo.
Eu me considerava um bom dorminhoco antes de conhecer Walker. Durante o almoço, ele me questionou sobre meus hábitos de sono. Eu disse a ele que geralmente tenho sete horas sólidas, adormeço facilmente, sonho na maioria das noites.
“Quantas vezes por noite você acorda?” ele perguntou. Acordo três ou quatro vezes por noite (geralmente para fazer xixi), mas quase sempre volto a dormir.
Ele balançou a cabeça gravemente. “Isso não é nada bom, todas essas interrupções. A qualidade do sono é tão importante quanto a quantidade de sono.” As interrupções estavam minando a quantidade de sono “profundo” ou de “ondas lentas” que eu estava tendo, algo acima e além do sono REM que eu sempre pensei ser a medida de uma boa noite de repouso. No entanto, parece que o sono profundo é tão importante para a nossa saúde, e o tempo que temos tende a diminuir com a idade.
A cafeína não é a única causa nessa nossa crise de sono; telas, álcool (que é tão problemático para o sono REM quanto a cafeína é para o sono profundo), produtos farmacêuticos, horários de trabalho, poluição sonora e luminosa e ansiedade podem desempenhar um papel em minar a duração e a qualidade do nosso sono. Mas eis o que é especialmente insidioso a respeito da cafeína: a droga não é apenas uma das principais causas de nossa privação de sono; é também a principal ferramenta com a qual contamos para remediar o problema. A maior parte da cafeína consumida hoje está sendo usada para compensar o mau sono que a cafeína causa – o que significa que a cafeína está ajudando a esconder de nossa consciência o problema que a cafeína cria.
Chegou a hora de encerrar meu experimento de privação de cafeína. Eu estava ansioso para ver o que um corpo que tinha sido privado de cafeína por três meses experimentaria quando submetido a algumas doses de café expresso.
Eu tinha pensado muito sobre que tipo de café eu tomaria e onde. Optei por um “especial”, o termo do meu café local para um expresso duplo feito com menos leite vaporizado do que um cappuccino típico; é mais conhecido como um flat white.
Meu especial foi incrivelmente bom, uma lembrança de quão ruim é um descafeinado falsificado; aqui estavam todas as dimensões e profundidades de sabor que eu tinha esquecido completamente. Tudo em meu campo visual parecia agradavelmente em itálico, fílmico, e eu me perguntava se todas aquelas pessoas com seus copos de papelão envoltos em mantas tinham alguma ideia da droga poderosa que estavam bebendo. Mas como eles poderiam saber?
Eles haviam se habituado há muito tempo à cafeína e agora a usavam para outro propósito completamente diferente. Manutenção do básico, ou seja, um pequeno e bem-vindo impulso. Eu me senti sortudo por essa experiência ter sido disponibilizada para mim. Isso – junto com o sono incrível – foi o maravilhoso dividendo do meu investimento na abstenção.
E, no entanto, em poucos dias eu seria um deles, tolerante à cafeína e viciado novamente. Eu me perguntava: havia alguma maneira de preservar o poder dessa droga? Eu poderia conceber um novo relacionamento com a cafeína? Talvez tratá-lo mais como um psicodélico – digamos, algo para ser tomado apenas de vez em quando, e com maior grau de cerimônia e intenção. Talvez apenas beber café aos sábados? Apenas um.
Quando cheguei em casa, abordei minha lista de tarefas com um fervor incomum, aproveitando a onda de energia – de foco! – correndo através de mim, e colocá-la em bom uso. Eu limpava e arrumava compulsivamente – no computador, no meu armário, no jardim e no galpão. Eu limpei, capinei, coloquei as coisas em ordem, como se estivesse possuído. O que quer que eu focasse, eu focava zelosamente e obstinadamente.
Por volta do meio-dia, minha compulsividade começou a diminuir e me senti pronto para uma mudança de cenário. Eu tinha arrancado algumas plantas da horta que não estavam fazendo a sua parte, e decidi ir à floricultura para comprar algumas substitutas. Foi no caminho que percebi a verdadeira razão pela qual eu estava indo para esta floricultura em particular: tinha um trailer estacionado na frente que servia um café expresso muito bom.