Por Adriane Primo – original HYPENNES
Entre tantas coisas que considero urgentes no Brasil, a alimentação é uma das top dez da minha lista. Eu não quero ser hipócrita e afirmar que sempre fui uma pessoa atenta ao que como, porque ‘comer de tudo’ não é necessariamente comer bem.
E, partindo desse princípio, falar sobre alimentação no BR requer descolonizar o paladar. Eu sei que é muita coisa para descolonizar nesse país! Mas nada mais nos resta enquanto vivermos com altos índices de violências raciais em todas as instâncias sociais. Cês tão acompanhando as notícias nos canais certos, né?
Convidei para esta conversa a ativista Monstra Animalista, responsável pela Dhuzati , uma coletiva independente da cidade do Recife, em Pernambuco, que discute cultura alimentar a partir de uma afropesrpectiva. A Monstra se define como translésbicha e, sendo dissidente sexual e negra, idealizou a Dhuzati como “saída urgente” para subverter a violenta lógica de lugar-social imposto a ela. E por questões de segurança prefere manter um certo anonimato.
“Trabalhei de diversas formas, inclusive com prostituição. Mas estava exausta e quando tive acesso sobre o que é autonomia alimentar, comecei a pensar em como transformar isso em minha fonte de renda associado ao fazer político. Então, chegar a Dhuzati sempre esteve conectado a lugares incômodos.”
1 – Esfirra integral com linhaça com recheio de cenabrin, cenouras e abobrinha no leite de coco. 2 – Acarajé com vatapá e um molho de feijão macassar triturado, temperado com alho, cebola, coentro, cominho, pimenta e sal, bastante e novamente moído antes do molho. 3 – Cuscuz com gergelim, hidratado com buriti da @acai.caboco com torta de grãomelete (massa do grãomelete assada no forno em forma de torta) refogadinho de cenoura, acelga e cebola e salada crua de tomate, alface e coentro. Fotos: @dhuzati
A Dhuzati se posiciona como uma coletiva antiespecistas, antihumanistas e antiterf. Imagem: @dhuzati
Alimentação sob ótica negra
A Dhuzati começou suas atividades em 2013 quando havia pouca discussão sobre cultura alimentar no Brasil e menos ainda sob uma narrativa de ótica negra. Narrativa essa que propõe a desconstrução de uma cultura de consumo de ultraprocessados e biofortificados. Ou seja, com base na autonomia alimentar.
Isso significa que a Dhuzati aponta os caminhos para a retomada das nossas africanidades, levando em consideração nossa condição local e comunitária. Sugerindo, por exemplo, a reciclagem de alimentos; coleta de alimentos nas ruas em árvores frutíferas e PANCS; criação de hortas comunitárias e agroecológicas e criação de cooperativas de consumo.
A Dhuzati se posiciona como uma coletiva antiespecistas, antihumanistas e antiterf. Aliás, três ingredientes que dão um caldo grosso de discussão. E se alguém ousar a sugerir que suas propostas são radicais, Monstra ressalta que só a radicalidade é capaz de resolver o controle social a que estamos sujeitos sobre aquilo que comemos, especialmente a população preta e pobre do país.
“Me colocar nesse campo é propor rupturas sistemáticas e drásticas à lógica industrial que temos hoje! Destruir florestas para criar bovinos que vão passar por um processo de industrialização [e ser vendidos para uma população faminta a preços absurdos] é que é radical para mim, afirma Monstra Animalista.“
Pãozinho integral feito com farinha integral @ecobioprodutoorganico; Bolo de rolo do @sr.vegano bem saboroso cheio de goiabada; Tofu de tomate seco da @girassolvegana, Maionese da @cozinhaabolicionista; Um refogadinho com shimeji branco da @togudelivery e o suco de maracujá com banana. Vai um cafezão da manhã aí? Foto:@dhuzati
Mas, como disputar uma narrativa com uma indústria tão bem articulada com a economia da atenção? Talvez essa seja uma das grandes questões a ser resolvida por esse movimento de retomada da autonomia alimentar. Mas não chega a ser uma incógnita.
Para Monstra, investigar sobre aquilo que comemos está intrinsecamente ligado ao entendimento de que existe uma historicidade violenta das subjetividades de pessoas pretas, dissidentes sexuais e indígenas. “Comida é afeto”, diz.
E se a História tende a não mais falhar, reforço que o Brasil é marcado pela violência do colonialismo escravocrata que desencadeou o racismo estrutural que tangencia o desenvolvimento social, político e humano das nossas vidas.
Com barreira estruturais impostas, Monsta acredita que entrar em espaços de poder, como a mídia, por exemplo, para disputar narrativas, talvez não seja o grande lance. Mas entende que é necessário para estimular um pensamento crítico, se as informações forem repassadas por e para pessoas pretas. “Nosso papel fundamental não é necessariamente atingir a mídia. Mas sim as pessoas que nos interessam”, diz. E esclarece:
“Acho que a gente é mais insurgente e mais combativa quando optamos por estratégias contra hegemônica, como o aquilombamento, por exemplo. Até porque precisamos seguir de forma concreta e responsável. É sobre segurança alimentar.“
Política com sabor
Tortilla de Grãomelete que combina camadas de creme de grão de bico com batatas andinas seladas regadas com molho leguminate, feito com mix de leguminosas hidratadas em um molho de tomate, inspirado nos saberes culinários dos povos da Mesoamérica, região nativa do tomate. Esse é um dos saborosos pratos que a gente encontra na Dhuzati, que se mantém principalmente com sua cozinha.
Tortilla de Grãomelete faz parte do grupo de assados da cozinha Dhuzati. Foto: @dhuzati
Eu tive a felicidade de experimentar o tempero da Dhuzati quando estive em Recife. Gata, que delícia! Realmente senti que estava comendo bem (em anos). Aliás, foi quando começamos a falar sobre comida mesmo que a entonação da voz da Monstra felizar. Sua empolgação falando sobre o angu, azeite de babaçu é emocionante!
O cardápio da Dhuzati é muito variado, assim como suas ações de enfrentamento. Entre essas ações são manutenção de blog com muitos textos incríveis, oficinas de manipulação de alimentos e palestras. Inclusive, a coletiva está uma websérie de quatro episódios sobre o feijão (eita que saudade do bolinho de feijão que minha avó fazia!). Ainda sem data de lançamento, a série vai abordar temas como a biologia do grão, registros arqueológicos e os modos de preparação ou feijão no mundo. A série “ Negras Porções” conta ainda com a participação da agricultora afroecológica e gestora do Sítio Agatha Luiza Cavalcanti, do Mestre Zé Negão, tesouro da cultura popular pernambucana, Ellana Silva, idealizadora do Toju Cozinha Intuitiva e do chef Jamal Joseph do Recife, que vão nos ajudar a descolonizar o feijão.
Mas se você chegou até aqui, imagino que queira aprofundar mais sobre o assunto. A Crioula | Curadoria Alimentar vai realizar um Curso Livre Alimentar numa Afroperspectiva em abril para qualquer pessoa que deseje afro orientar suas práticas ativistas e construção de sistemas alimentares saudáveis, decoloniais e sustentáveis. A Dhuzati estará presente no curso , bem como figuras como a Chef Solange Borges, da Culinária de Terreiro, a ativista Ellen Monielle, da eco.fada , a Chef Talita Xavier , a filósofa Katiúcia Ribeiro, o advogado Silvio Almeida, entre outres. As inscrições seguem abertas e podem ser feitas aqui .
Monstra também nos indica algumas referências:
Livro: Aph and Syl Ko – Aphro-Ism: Essays on Pop Culture, Feminism, and Black Veganism from Two Sisters
Filmes: The Invisible Vegan – disponível no Youtube
Da África aos EUA: Uma Jornada Gastronômica – disponível no Netflix
Figuras Públicas: Dai Lima: @pretavegetal
Carla Candace: @carla.candace
Rufino Mali: @rufino.mali
& as Cozinhas: Toju Cozinha Intuitiva Afetiva : @toju_odo
Rosas do Dênde: @dodenderosas
Chef Cola: @africanveganonabudget
A Crioula | Curadoria Alimentar tem como propósito trazer ancestralidade, conceitos sobre regeneração, princípios de ecologia, alimentação biodiversa, e partilhar isso com a sociedade, espalhando nossas sementes, construindo uma cultura regenerativa. Para isso acontecer é importante que mais pessoas contribuam conosco, através do Clube de Assinaturas da Crioula ou fazendo uma transferência via pix pela chave: oi.crioula@gmail.com.