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Quem é o Chef e quem é o Cozinheiro?

Vou cantarolar um funk antigo pra vocês entrarem no clima: “qual a diferença entre o charme e o funk? Um é bonitinho e o outro elegante.”

É assim que esses profissionais são vistos pelo público, o Cozinheiro é bonitinho, elegante é o Chefe de Cozinha. Deixando de lado a comparação, estamos falando aqui do mesmo profissional – o cozinheiro – que na prática só ocupa um cargo diferente, de Chefe da Cozinha.

Hoje é celebrado o Dia Internacional do Chefe de Cozinha – “Chef” em francês, dia 20 de outubro. No Brasil a data é comemorada em 13 de maio e foi criada em 1999 pela Associação Brasileira da Alta Gastronomia (ABBA), marcando também o começo da glamourização e aparição da alta gastronomia nas grandes mídias com programas de TV e dos Chefes se tornarem estrelas de televisão.

Antes de entrar para o ramo eu não tinha nem ideia do que era gastronomia ou chefe de cozinha, também não tinha noção do trabalho de um cozinheiro. A primeira vez que ouvi a palavra “Chef” e que entendi o que era um Chefe de cozinha foi assistindo um programa culinário do Chef inglês Jamie Oliver.

Jamie Oliver

uamie se destacou nas TV da terra da rainha no início dos anos 2000, onde preparava receitas simples e caseiras com um toque refinado e com seu jeito afetuoso e despojado de um jovem cozinheiro de 20 e poucos anos, que foi conquistando o mundo com seu carisma. Depois disso vieram outros programas e Jamie fez muito sucesso quando iniciou uma campanha pela melhora da alimentação escolar no Reino Unido, forçando o governo revisar o orçamento destinado à merenda escolar. Ele conseguiu trocar uma merenda escolar cheia de ultra processados como achocolatados, carnes ultra processadas como nuggets e peixe frito, além de batatas fritas e bolinhos recheados por frutas, verduras e legumes frescos, desafiando os próprios cozinheiros escolares e as crianças e adolescentes que mal conheciam alimentos in natura antes da chegada de Jamie.

Jamie foi um sucesso e logo depois outros Chefes e outros programas culinários surgiram. Lembro de me interessar por culinária e gastronomia assistindo realities shows norte americanos como “Top Chef” com cozinheiros profissionais disputando o título de melhor chef da temporada e o famoso “Master Chef” que além de cozinheiros profissionais também tem temporadas com cozinheiros amadores e sem treinamento. Além destes, outros programas surgiram e foram tomando conta da TV e dos espectadores, principalmente os brasileiros.

Julia Child

Antes de Chefes profissionais tomarem conta da cena, estávamos acostumados às mulheres nas cozinhas, e as maiores referências da TV brasileira são a Palmirinha e Ana Maria Braga, ambas apresentadoras de programas matinais com quadros culinários. Nos Estados Unidos, a figura da mulher na cozinha é da Julia Child, pioneira no mundo da gastronomia na televisão. Ela foi uma das primeiras mulheres a entrar numa escola de culinária na década de 1950, na escola mais tradicional Le Cordon Bleu em Paris, na França. E em 1963 seu programa de TV “The French Chef” (A Chef Francesa) foi um sucesso, onde ensinava receitas francesas ao público norte americano. Além dos programas culinários, Julia foi uma grande escritora e jornalista gastronômica.

É preciso notar que diferente dos Chefes famosos, as mulheres na cozinha normalmente têm uma abordagem diferente, voltada para a dona de casa com receitas caseiras e mais populares. Os grandes chefes fazem receitas chiques da culinária francesa e outras culinárias internacionais, pratos requintados e cheios de técnica, usam uniforme branco e usam nomes difíceis como bechamel, brunoise, etc.

Esse “boom” culinário e repentino despertar gastronômico do público deu o aval para uma cozinha mais requintada e elegante nos restaurantes. Brasileiros estavam acostumados com restaurantes “buffetzão” ou o chamado PF, o prato feito com arroz, feijão, carne, ovos fritos e batata frita, também conhecido como A la minuta. Com a popularização dos Chefes de Cozinha e restaurantes a la carte (restaurantes em que o cliente faz o pedido escolhendo um prato no cardápio), a cozinha brasileira também passou a ser valorizada pelos próprios cozinheiros e elevada a outro patamar, bem distantes do pequeno restaurante de bairro. O impacto da modernização e valorização da gastronomia local fez com que cursos e faculdades de gastronomia se tornassem mais populares e mais procurados.

Entenda melhor sobre a profissão cozinheiro e os detalhes deste mercado de trabalho

Cozinheiro é o profissional responsável por higienizar, preparar e finalizar os alimentos de acordo com a especificidade do prato, tipo de restaurante e culinária. Além disso, cuida da organização e limpeza da cozinha e do seu espaço de trabalho. Tem suas responsabilidades como por exemplo: o cozinheiro responsável pela higienização das saladas, ou aquele responsável pelas carnes. Todos eles trabalham em conjunto com o Chefe da Cozinha.

Chefe de Cozinha é um cargo, o mais alto cargo dentro de uma cozinha, é como um gerente. Um gerente responsável por gerenciar e organizar todas as atividades da cozinha como por exemplo criar um cardápio, precificar e fazer as fichas de custos dos pratos, contatar fornecedores, fazer as compras, testar pratos novos, organizar e coordenar o trabalho dos cozinheiros e auxiliares, fazer a “ponte” entre a cozinha e o salão do restaurante, cuidar da parte burocrática muitas vezes sendo administrador do restaurante além da organização da cozinha. 

Como podemos ver, nem sempre a presença do Chefe de cozinha vai ser constante na cozinha. As responsabilidades dele é muito mais administrativa, e numa cozinha profissional ele acaba apoiando e supervisionando o trabalho de cozinheiros e auxiliares. É claro que, aquela imagem de Chefes concentrados finalizando um prato com pequenas flores ou gritando na cozinha é real, mas muitas vezes glamourizadas em séries, filmes e programas culinários.

Cozinheiros como são os chefes, são pesquisadores da alimentação e a tarefa de pesquisar, testar, combinar sabores e saberes faz parte do processo criativo e trabalho dentro de uma cozinha. 

Para vocês entenderem melhor vou dar meu exemplo: Eu sou gastróloga/gastrônoma porque fiz a faculdade de gastronomia que é um curso superior que forma profissionais habilitados para trabalhar no setor de alimentos e bebidas como hotéis, restaurantes, pousadas, padarias, bares, etc. Como eu sempre gostei de cozinhar, ingressei no mercado de trabalho em restaurantes. Fui estagiária onde aprendi o básico sobre uma cozinha profissional e fui responsável por 5 meses pela finalização dos pratos, e nesta “praça”, como chamamos as divisões na cozinha. Assim, eu pude aprender sobre todos os pratos do cardápio antes de ir realmente para as panelas. Depois disso trabalhei como auxiliar de cozinha e cozinheira. Na prática tanto como estagiária, auxiliar e cozinheira fiz as mesmas coisas: organizar e higienizar os alimentos, fazer o pré-preparo, cozinhar, finalizar, armazenar, finalizar pratos, organizar e higienizar a cozinha. O que mudou foram as responsabilidades que eu tinha conforme ia adquirindo mais experiência. Com 6 anos no mercado de trabalho eu cresci bastante e cheguei a exercer o cargo de cozinheira líder, onde eu já tinha maiores responsabilidades como ajudar na construção do cardápio, além de coordenar o trabalho dos auxiliares. Nunca me vi como Chefe porque sabia que ainda tinha um caminho longo pela frente e que ainda não tinha tanta experiência administrando uma cozinha ou um restaurante.

Sobre os cursos de Gastronomia e Cozinheiro:

Existem no Brasil várias modalidades de cursos da área da gastronomia: cursos livres, cursos profissionalizantes de cozinheiro, escolas clássicas de culinária e ainda as graduações de ensino superior em Gastronomia.

SENAC Gastronomia

Os cursos de graduação em gastronomia têm disciplinas teóricas e práticas tanto na cozinha como culinária brasileira, francesa, italiana, e outras culturas culinárias. Além disso, há as disciplinas voltadas para higiene e legislação dos alimentos, nutrição, história da alimentação, enologia, etc. Contando também com conhecimentos de administração como marketing, produção de eventos, custos gerenciais, entre outras, variando o currículo de acordo com cada instituição.

Existem cursos de cozinheiro de grande prestígio como o Curso de Cozinheiro do Senac e a Escola de Culinária Francesa Le Cordon Bleu, ambas as escolas têm uma formação técnica voltada para a formação de cozinheiros tendo como base as técnicas de culinária francesa. E outras possibilidades mais rápidas e focadas são cursos livres com abordagens mais objetivas como cursos de confeitaria, massas, panificação que aprofundam conhecimento nestas áreas específicas.

De maneira geral, não é necessário fazer uma graduação em gastronomia para ser cozinheiro ou trabalhar em restaurantes.

Existem ainda cursos de cozinheiro, voltados especificamente para o mercado de trabalho, além de cursos livres como cursos de confeitaria, cursos de culinária francesa, curso de culinária italiana, etc. Outro ponto importante sobre a profissão é que muitos cozinheiros, principalmente os mais antigos adquiram experiência trabalhando, sem passar por cursos ou faculdade, sendo a grande maioria dos profissionais autodidatas. Digo isso, porque não são 3 anos de faculdade que vão lhe dar experiência suficiente para o mercado de trabalho. Apesar de uma profissão onde técnica é de extrema importância é a prática que faz o cozinheiro e o aprimoramento do seu desempenho, criatividade e autenticidade.

Profissionais com formação ou sem formação são os maiores dilemas da profissão.

Num pensamento lógico qualquer pessoa pode aprender a cozinhar, no entanto, a faculdade de gastronomia ou um curso de cozinheiro te ensinam técnicas culinárias que fazem parte do dia a dia de uma cozinha, o que agiliza e padroniza o trabalho. O grande problema é que profissionais sem experiência e qualificação são mais baratos e acessíveis. A média salarial de um cozinheiro varia de R$1,000 até R$1,500 líquidos, isso para carga horário de 8 horas (no papel) que sempre tem horas extras e escalas 6×1, sem finais de semana ou feriados e sem datas especiais, normalmente aquelas em que os clientes querem o serviço como Dia das Mãe, Dia do Namorados, Ceias de Natal e Ano Novo, etc. Auxiliares ganham um salário mínimo ou menos às vezes, e benefícios como vale transporte, adicional de insalubridade nem sempre são garantidos. Isso vale para restaurantes de franquias de fast food à buffet livre ou restaurantes a la carte. Do mais simples ao mais refinado.

Profissionais sem qualificação são mais fáceis de serem treinados e também mais dispostos a aceitar um baixo salário, deixando o mercado saturado de profissionais sem qualificação sem garantias. Há muitos profissionais qualificados que acabam se sujeitando à exploração dos empresários. De maneira geral, trabalhar em cozinhas pede horas em pé, expostos ao calor extremo, lidando com alimentos in natura e processos de cocção, produtos químicos como detergentes e limpadores, água sanitária sem equipamentos de proteção individual e nem mesmo uniforme adequado. Trabalhamos com calor, fogões e fornos quentes, água quente, facas, e utensílios perigosos onde muitas vezes ocorrem acidentes. O ambiente de trabalho normalmente é de muita pressão e exigência por conta da responsabilidade que é preparar alimento para ser consumido.

Precisamos lembrar que profissionais autônomos também são cozinheiros como pequenos empreendedores que vendem bolos e doces caseiros, quem faz marmitas, e tantos outros pequenos “bicos”. Inúmeras pessoas têm uma renda extra trabalhando com alimentação, o que faz do mercado da gastronomia um campo enorme de oportunidades, mas também não tem grandes regulamentações e nem sindicato da categoria.

Cozinheiros vão do fogão ao chão depois que os pratos são servidos, limpando toda a cozinha e organizando tudo para mais um dia de trabalho. Os cozinheiros, diferente dos Chefs estrelas da TV, não são valorizados, nem financeiramente, nem pelo público consumidor e muito menos pelos seus empregadores. Para se tornar um chefe de cozinha é preciso ter anos de experiência (com ou sem graduação), além de uma boa dose de habilidade para liderar, ter tantas responsabilidades e tarefas e também ser um bom administrador além de conhecimento de cozinha, de culinária e praticamente de todo o restaurante.

Dito isso, é importante destacar que todo Chefe é cozinheiro, mas nem todo o cozinheiro é chefe. Não se engane, cozinheiros não se formam Chefes com cursos rápidos, e nem com uma formação em gastronomia. 

Sobre a hierarquia dentro da cozinha e a colonização europeia das culturas alimentar:

O nome dado ao cargo de cozinheiro chefe “Chef de cozinha” vem da escola de gastronomia francesa. Na década de 1940 um grupo de cozinheiros renomados do país revolucionou a culinária tradicional francesa, marcada por pratos pesados e gordurosos e métodos demorados e difíceis de se preparar. A chamada Nouvelle Cuisine – ou Nova Cozinha, padronizou o serviço de cozinha nomeando e aprimorando receitas e técnicas culinárias que são conhecidas e utilizadas praticamente em todo o mundo. 

Por exemplo: o Molho Bechamel, a Maionese, cortes de ingredientes no formato julienne e brunoise, bouquet garni (um mix de ervas aromáticas), entre outros. Por conta disso esse conhecimento foi elitizado, e num primeiro momento só acessível a homens.

Assim nasceu a chamada alta gastronomia, deixando de lado conhecimentos e saberes populares e se apropriando muitas vezes da invenção de técnicas ancestrais. 

A hierarquia dentro da cozinha separa os cozinheiros numa escala de conhecimento e experiência do iniciante ao chefe da cozinha e suas atribuições como chefe de partida, auxiliar de cozinha, garde manger (cozinha fria, saladas canapés, etc), patisserie (confeiteiro), boulangerie (padeiro), responsável pelas carnes, responsável pelos molhos, e por aí vai. Em países europeus e nos Estados Unidos esse sistema de cozinha é mais comum. Aqui no Brasil essa divisão de trabalho vem crescendo bastante, principalmente com o crescimento e valorização da alta gastronomia. Mas esse serviço pede profissionais qualificados, como mencionei no texto, que quase sempre não são pagos de maneira justa

A alta gastronomia vulgariza e inferioriza culturas alimentares populares, a “mistura”, o feijão com arroz e as técnicas ancestrais ao mesmo tempo que se nutre e apropria ingredientes, saberes e referências alimentares com uma nova roupagem. O meme Raio Gourmetizador, uma piada na internet trás de forma cômica relatos como: “pérolas de tapioca ao vinho tinto” que é a mesma coisa que o Sagu de vinho, uma sobremesa feita com ´fécula de mandioca, vinho tinto, açúcar e especiarias. Além deste exemplo cômico, ingredientes como o milho, a mandioca, carnes, queijos, doces, e ene outras receitas são modificadas, e repaginadas e se tornando inacessíveis para os produtores daqueles mesmo insumo.

Recortes de gênero, raça e classe na cozinha.

Por um acaso, alguns dias antes de escrever este texto assisti o filme Pegando Fogo (Burnt 2015) – Alerta de Spoiler! No filme, o personagem principal é um Chefe de Cozinha em busca da sua 3ª estrela Michellin, Adam Jones, um cozinheiro com problemas com abuso de drogas, álcool e um ego insuportável. Algumas cenas me marcaram muito, como a qual Adam obriga uma cozinheira mulher a pedir desculpa por seus erros e a acusa de ter uma energia horrível que teria estragado todo o trabalho.

Burnt

Em outra cena ele praticamente faz com que ela seja demitida de seu antigo trabalho, porque segundo ele, ali no seu restaurante ela trabalharia melhor. Em vários momentos se fala sobre o salário mínimo oferecido aos cozinheiros e Adam até mesmo oferece que um estagiário pague para trabalhar com ele. De maneira artística e inspirada na realidade de cozinhas clássicas, o filme mostra detalhes e situações importantes na profissão Cozinheiro, detalhes bons e ruins que abordamos aqui.

Como vimos até agora no texto e no comentário sobre o filme, percebemos que Chefes de Cozinha são majoritariamente homens brancos, herdeiros de grandes restaurantes ou grandes hoteleiros, descendentes de europeus, provavelmente fizeram seu treinamento e carreira culinária no exterior, na Europa, na França. Isso significa alta gastronomia. A nós, reles mortais, resta a culinária caseira, feita por mulheres brancas na TV e por mulheres negras nas casas de família. Não só no filme, como em programas culinários, no geral, essa distinção entre culinária caseira e alta gastronomia é de maneira geral comum no dia a dia de uma cozinha.

Quem é a pessoa que mais cozinha na sua casa? Sua mãe, sua avó, suas tias? Salada, legumes e verduras são coisas femininas; carnes, fogão, churrascos, são coisas masculinas.

Num primeiro momento, somente homens eram aceitos em escolas de gastronomia, e ainda hoje é muito comum que o gênero masculino prevaleça em cozinhas de alta gastronomia, tanto que os Chefes e cozinheiros mais prestigiados e respeitados são homens. Em programas de TV sobre gastronomia é comum a maioria dos competidores serem homens, e ainda o machismo e a misoginia são motivos pelos quais poucas mulheres lideram cozinhas. No programa Master Chef (apresentado no país pela rede Bandeirantes) houve um caso explícito de machismo, onde uma das competidoras foi inúmeras vezes desqualificada pelos colegas homens, por vezes suas ideias não eram ouvidas e respeitadas. Outro programa, na rede de streaming Netflix, a série The Chef’s Table, onde em cada episódio um Chef apresenta seu trabalho de uma maneira bem intimista e pessoal. Dos 31 episódios, 10 apresentam mulheres e entre elas os maiores desafios citados são o machismo e o preconceito sobre seu trabalho e a dúvida se serão capazes de comandar uma cozinha ou se vão realmente fazer uma culinária de alta gastronomia. Enquanto isso, os homens demonstram o quanto suas criações culinárias são extrapolações de ego e de sua criatividade.

Assim como comentei sobre a cena do filme, no mercado de trabalho cenas como estas são bem comuns. Inclusive, há campanhas contra casos de violência contra mulher na gastronomia. O perfil no Instagram Basta! é uma plataforma de escuta e acolhimento de profissionais mulheres que sofrem com casos de violência no ambiente de trabalho.

Além das questões de gênero, é preciso dar destaque a questões de raça: quem é a mulher negra na gastronomia?

Eu mesma não posso negar que só me interessei pela gastronomia quando vi o requinte e o glamour dos Chefes de Cozinha, assim eu pude perceber a grandiosidade e importância do cozinhar. O “tiro no pé” foi quando me dei conta que por essa ideia de Chefes de Cozinha são cozinheiros de verdade eu acreditei que profissionais como Cozinheiras escolares – as merendeiras -, cozinheiras que trabalham em pequenos restaurantes, cozinheiros industriais não tinham o mesmo prestígio que Chefes.

Quando entramos em cozinhas profissionais muitas vezes mulheres negras são as profissionais responsáveis pela limpeza, pela louça, pelo trabalho pesado que os estagiários dos cursos de gastronomia não querem fazer. A assistente da Ana Maria Braga é a Maria, uma mulher negra que não sabemos muita coisa, e ela está ali o tempo todo auxiliando a apresentadora . A Chefe Benedita Ricardo, a Benê, foi a primeira mulher a ingressar numa escola de gastronomia no Brasil e a primeira mulher negra. Aos 38 anos ela conseguiu uma bolsa de estudos para o curso de Cozinheiro no Senac Águas de São Pedro em São Paulo, no início da década de 1980. Benedita, antes disso, cozinhava para uma família alemã e num concurso da Revista Claudia foi premiada tornando-se uma cozinheira de prestigio cozinhando para o presidente da época Ernesto Geisel.

Nastácia e Benta

Outro caso que precisamos olhar com atenção é sobre o maior totem da culinária brasileira: o livro de receitas da Dona Benta, personagem da literatura de Monteiro Lobato. Eu mesma já fiz um texto falando sobre o porquê da imagem da Dona Benta – uma mulher branca, letrada, dona de uma fazenda – é referência de culinária se, de acordo com a obra, quem estava na cozinha era Tia Nastácia – a negra cativa, sem estudo, sem conhecimento.

A Dona Benta foi transformada até mesmo em marca de alimentos processados, e, assim, consolidando essa imagem de cozinheira no inconsciente coletivo brasileiro, mesmo que a verdadeira responsável pela preparação das refeições altamente elogiadas seja a Tia Nastácia. Um fato que nos faz questionar onde estão as mulheres negras na gastronomia e porque não somos reconhecidas como Chefes, se quem esteve na cozinha o tempo todo desde a chegada dos colonizadores fomos nós. A Bruna Crioula, na série de lives no instagram #livedaBru, conversou com a Tais Machado: socióloga que falou sobre sua tese de doutorado “Um pé na cozinha”, falando sobre sua pesquisa sobre cozinheiras negras no Brasil. E ela destaca como a branquitude cria barreiras para desqualificar e invisibilizar potências negras, principalmente mulheres. Fica “escuro” que a culinária brasileira foi desenvolvida a partir dos conhecimentos de mulheres negras e esse fato é negado até mesmo por pesquisadores da área. Link da live.

Para finalizar esse textão onde passamos por questões sobre a profissão cozinheiro e as questões de gênero e raça que também estão intrínsecas à profissão e a nossa sociedade, precisamos perceber a importância destes profissionais.

Profissionais da gastronomia, principalmente cozinheiros precisam ser valorizados e respeitados pela importância que tem manipulando alimentos e transformando ingredientes em receitas e pratos que fazem da nossa cultura alimentar mais rica, cheia de histórias, práticas ancestrais e a alquimia física e química de transformar aquele alimento.

Cozinheiros não são só cozinheiros, somos um pouco agricultores, um pouco biólogos, um pouco botânicos, um pouco nutricionistas, um pouco engenheiros, um pouco cientistas, um pouco historiadores, um pouco matemáticos, um pouco médicos, um pouco políticos, um pouco geógrafos, um pouco professores. Pois todas essas especialidades passam pela alimentação. Somos como fio condutor, entre o que é cultivado na terra e servido à mesa; tradutores de algo tão importante nas nossas vidas. Se alimentar, nutrir nosso corpo que é casa do habitar este mundo. Se comer é um ato político, cozinheiros são como deputados e senadores que transformam alimentos em comida, comida em patrimônio, e cultura alimentar em identidade. 

 

Texto por Natália Escouto

Saiba mais em:

Benedita Ricardo | Entrevista Brasil de Fato