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Entrevista realizada por Kellen Vieira

Em alusão ao Dia Internacional da Mulher, queremos evidenciar histórias de mulheres negras que, ao longo da sua trajetória, lutam pela mitigação das iniquidades adensadas sob o cotidiano da população negra no país. Conversamos com Maria Malcher, mulher nortista que contribui no fortalecimento dos processos de transição agroecológica em territórios quilombolas no estado do Pará. 

Maria é professora de Geografia no IFPA, coordenadora do Grupo de Pesquisas Dinâmicas e Relações espaciais e raciais, militante do Centro de Estudos e Defesa do Negro de Pará – CEDENPA. 

Você pode se se apresentar e contar sobre seu trabalho para gente?

Eu sou Maria Malcher, sou ativista do Centro de Estudos e Defesa do Negro de Pará CEDENPA e professora do Instituto Federal do Pará IFPA. Eu sou geógrafa e coordeno um Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas – NEABI – mas antes disso eu atuei na organização de associações de comunidades quilombolas, a Malunga, e daí eu comecei a trabalhar com os quilombolas nessa perspectiva da terra, territórios e territorialidade. Depois veio o processo mobilizatório da marcha das mulheres negras e, como eu estava nesse trabalho com os quilombolas, começamos a atuar com as mulheres quilombolas.

Eu sou do município de São Miguel do Guamá, onde existem muitas comunidades negras rurais como a minha família. Eu mesma já nasci na cidade, mas sempre com aquele cotidiano de ir fazer a farinha no interior. A gente tinha esse hábito de fazer a roça no interior. Essa comunidade foi mapeada como uma comunidade quilombola que é a comunidade de Santa Rita das Barreiras e atualmente essa é uma das comunidades titulada pelo Instituto de Terras do Pará ITERPA como comunidade quilombola. 

Então, eu sou da diáspora quilombola. A gente ainda não está refletindo essa diáspora quilombola. A gente tá mais preocupada com a legalização dos territórios e as pessoas que ainda estão lá, nesse sentido, porque a gente avalia que os desafios são maiores, tanto na questão da produção, quanto de acessos a vários direitos.

Então, a minha trajetória é essa de uma pessoa da diáspora quilombola. Talvez, quando a gente superar algumas questões, vai ter um grupo mais fortalecido que reflita essa questão da diáspora. É bom refletir sobre isso porque algumas pessoas vão voltar, mas outras não, e vão ter essa relação diaspórica elencando com a questão africana e com os valores da circularidade. É aquela coisa, eu saio do quilombo, mas o quilombo não sai de mim!

Como é a Luta por acesso a alimentação num território tão biodiverso como a Amazônia? 

Eu acredito que a luta pelo acesso à alimentação perpassa pela luta pela segurança alimentar e nutricional. Porque, muitas das nossas comunidades têm o território, mas a técnica de manejo do solo ela sempre foi e cada vez mais, devido às mudanças climáticas e aos impactos ambientais, ela tem se acirrado nas comunidades e a gente tem que se reconstruir, ainda mais nesse contexto de pandemia e trabalhar em redes.

Algumas vezes, para nós, a terra não é o problema; mas sim, como trabalhar com ela nessa perspectiva da segurança de uma produção que tenha diversidade no sentido da diversificação. Uma produção que fortaleça economicamente a comunidade e os grupos locais dessa comunidade nesse sentido. Então, o desafio é esse: porque o trabalho não é individual, é coletivo, e o coletivo exige um esforço maior.

Eu acredito que passar por um processo de fortalecimento das organizações e redes que trabalham com a alimentação orgânica e a acessibilidade e o subsídio das sementes. Outra questão, é o processo de transição agroecológica na comunidade. As comunidades passarem por esse processo de transição agroecológica, tentando perceber essa questão dos impactos. O que impacta diretamente.

Ano passado, a produção era mais intensa nesse sentido e, agora, você tem outros fatores externos que fazem com que a produção seja escassa. Aí vem desde mudanças climáticas, o cotidiano de quem produz nas comunidades.

Quais os principais desafios e conquistas em relação à alimentação nos últimos anos?

Aqui a gente vem de uma trajetória do povo que vem para a cidade para estudar e, no geral, a gente não volta. Estuda, arruma emprego e consegue se verticalizar na educação, porque muitas de nós não consegue e pára no meio do caminho. E eu acho que o meu papel nesse processo é como uma mediadora política, contribuindo com esses grupos, seja na forma de orientação, formação, para que a gente crie conjuntamente estratégias para quem tá morando aqui na cidade e quem continua no espaço agrário. Não só essa empatia, mas essa articulação, mesmo que tímida, diante do agronegócio aqui na Amazônia, é muito importante.

Então, a mediação política, ela vai desde lutar pela escola, ou lutar pela permanência da escola na comunidade, até criar um mecanismo de promoção da igualdade racial e fortalecimento de grupos e mulheres locais.

E são milhares de questões que a gente abarca, a partir dessa pauta da segurança alimentar e nutricional, que a gente acaba trazendo algo que a gente avalia como mais importante nas comunidades, até para amenizar conflitos. É a mesma efetivação da regularização fundiária nos territórios quilombolas.

Como sua trajetória impactou o desenvolvimento de conquistas sociais na sua região? O que você diria para a Maria de 20 anos?

Tem muitos impactos. Eu sou próxima de uma comunidade quilombola. Então, essa questão da diáspora de morar numa cidade pequena e depois morar na região metropolitana e, conhecendo a comunidade desde criança, a gente percebe o impacto que a política territorial quilombola causou naquela comunidade. Então, algumas questões que eles conseguiram: era uma comunidade que estava fadada a trabalhar somente com o foco da exploração mineral da argila para fazer tijolo, e aí, como uma política direcionada com um plano de uso, você tem famílias que trabalham a diversificação, trabalham a trituração da terra e também a preservação ambiental e da diversificação da sua produção. Não aderindo apenas à monocultura da mandioca, comum na região. Daí tem uma diversidade de frutas e verduras. É verdade que no campo, com o aliciamento do agronegócio, as famílias tendem a produzir o que tá se vendendo no mercado, o que o mercado está demandando. Mas daí, você tem famílias tradicionais que fogem à regra e fazem opção pela diversificação e melhoramento dos produtos. Como o melhoramento da macaxeira, transformando em macaxeira chip. 

Aqui temos uma rede, que é a rede bragantina de economia solidária, que está associada ao CEDENPA, que visa estimular essa questão da produção diversificada e do produto. Do tucupi que vira farinha. e isso só foi possível por conta da mobilização de sujeitos para essa questão. 

É evidente que as comunidades sempre resistiram nesse sentido. Mas aí, você tem aquilo que a gente busca, que é a auto estima coletiva da comunidade e a afirmação, enquanto o território da negritude. E tem essa questão das comunidades de roça e comunidades que fazem o manejo da floresta, a exemplo de comunidades do baixo tocantis.

Então, são muitas experiências exitosas que fazem a gente insistir nesse caminho, como o olhar para a cultura alimentar, que muita coisa a gente perdeu, e a gente tem que voltar e conversar com nossas avós, nossas tias e perguntar: “olha, como vocês comiam essa araruta?” Então, é a reeducação mesmo, alimentar, e de todos os aspectos, nesse sentido.

Eu não fazia ideia de que teria esse retorno. Quando eu comecei esse trabalho, eu não sabia que teria esse retorno para a população, de entrar no movimento, de tentar ser uma mediadora política. E a gente vai adquirindo essa certeza ao longo do tempo. Então, não sei se eu faria diferente.

Eu me gosto mais agora, do que com 20 anos. Do trabalho que eu faço. Quando eu tinha 20 anos, eu queria aquele corre de estudar teatro e ter uma vida urbana. Daí, quando eu faço a opção por estudar geografia, minha vida muda e eu quero passar os finais de semana na comunidade e agora não pode mais por conta do corona, né? Então, quando eu tinha 20 anos, eu não tinha a dimensão de que teria esse retorno. Até porque, o movimento quilombola era muito recente na minha vida.

Qual a principal característica da luta de mulheres na região amazônica?

Eu acredito que é muito forte para gente. É pertencimento ao território. A nossa luta, tanto de mulheres negras, quanto indígenas, ou negras-indígenas, ainda é o pertencimento ao território, muito ligado ao modo de vida. O modo de vida, para a gente, é uma especificidade, porque para alguns, mesmo os que moram na Amazônia urbana, o modo de vida é o modo de viver, é um estilo. No urbano, é o estilo.

Mas no nosso caso, a nossa luta perpassa o pertencimento ao território e ao modo de vida que convive com a floresta e que não tem inquietude com as relações das florestas e rios. Por exemplo, quando eu reflito: “o que seria o autocuidado e o cuidado coletivo?” No modo de vida urbano, talvez uma terapia, fazer um pilates. Mas o que nos linkaria de um modo geral, seria o retorno às ervas, ter um giral, conversar com os mais velhos.

Evidente que isso se torna cada dia mais um desafio. E essa questão também é essa relação com as sociedades indígenas. Porque, para a gente, é muito tranquilo se perceber negra e indigena. Tem sido uma proposta da rede bragantina, e eu tenho me aproximado da metodologia da rede, e tenho feito esse exercício. A Nazaré Reis e também a Tatiana, que estão no núcleo puxirum, e é a metodologia de aproximação, de conhecer o território e saber os desafios ali presentes, e todas as mulheres da rede ou que estão próximas à rede.

Por exemplo, recentemente nós fizemos a ajuda humanitária, e elas fizeram uma oficina de sabonete nessa pegada: sabonete de aroeira. Evidente que isso já tá no mercado e a indústria farmacêutica já até patenteou vários produtos, mas essa troca de você fazer o seu produto e tentar comercializar a um preço justo, e tentar que nessa comercialização tenha um subsídio para que você alimente sua família, é um exercício muito massa. E agora, vendendo esses produtos que traz a troca, e também trazer as práticas de que elas já faziam antes.

Ainda é preciso novas mulheres na luta pelo direito humano à alimentação adequada? O que você diria para as mulheres que estão por vir?

Eu acho que os coletivos das mulheres mais novas estão mais sensíveis. Vocês buscam as redes, vocês compram produtos, vocês acham massa e colocam nas redes sociais e divulgam. Vocês têm trabalhos muito massa que contribuem para que a sociedade se sensibilize. Não só isso, mas crie empatia e crie novos hábitos, incluindo a periferia.

Por que, o nosso objetivo é que nossos produtos cheguem na periferia. Que, na periferia, você também aumente a imunidade da periferia para que não coma só um (esquiro?) ou, se vc vai comer uma farofa, mas você coloca uma mistura na farofa para aumentar a imunidade, tomar um chá.

As mais novas já trazem essa pegada e, muitas mulheres que trabalham e têm filhos, se distanciaram dessa prática do cuidado a partir da cultura alimentar. Às vezes o corre-corre do dia-a-dia faz você fazer um arroz com mortadela ao invés da sopa. E as mais novas vêm com uma cultura alimentar mais saudável. Agora, eu acharia legal, se houvesse uma intensificação do intercâmbio entre quem produz e quem consome.