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Entrevista realizada por BRUNA DE OLIVEIRA

Em alusão ao Dia Internacional da Mulher, queremos evidenciar histórias de mulheres negras que, ao longo da sua trajetória, lutam pela mitigação das iniquidades adensadas sob o cotidiano da população negra no país. Conversamos com Maria Noelci Homero. Ativista pelo direito humano à alimentação adequada e o enfrentamento ao racismo em rede feminista. 

Noho, como é conhecida, é bibliotecária, funcionária pública aposentada com militância marcada pelo movimento de mulheres negras desde a década de 80.

Fale um pouco de você, quantos anos tem, sua formação, onde trabalhou/trabalha?

Meu nome é Maria Noelci Teixeira Homero, eu tenho 73 anos, nasci em 10 de outubro de 1947 em Porto Alegre. Eu fiz cursos de formação de Magistério no ensino médio e graduação em Biblioteconomia e Documentação. Sou aposentada enquanto funcionária pública da administração do governo do estado [do Rio Grande do Sul]. Exerci cargo de técnico científico no governo do estado. Me aposentei em 1998, trabalhei na biblioteca do Palácio Piratini e também em outra fundação filiada ao Estado também enquanto bibliotecária. Em ambos os cargos sou aposentada. 

Qual a relação entre gênero, raça e Segurança Alimentar e Nutricional?

A relação entre gênero, raça e SAN é muito forte, pelo menos para nós enquanto mulheres negras, porque quem trabalha e quem vive e quem tem esse legado de segurança alimentar de ancestralidade, isso é muito presente com as mulheres negras. É importante nós trabalharmos esta relação com o alimento, com segurança alimentar porque esta relação é muito presente dos nossos fazeres, dos nossos saberes a gente traz esse legado enquanto fazer, produzir esta relação com a terra, esta relação com o plantar isso é um legado que vem da nossa ancestralidade. Trabalhar com gênero e raça é extremamente importantíssimo porque são as mulheres, na grande maioria são as mulheres que têm esta preocupação da alimentação saudável, são as mulheres que produzem mesmo sendo as mulheres que estão mais em insegurança alimentar mas são elas que produzem o alimento. É importante para mim e a instituição que faço parte trazer esta dimensão de gênero e de raça. Todo o nosso trabalho é pautado na dimensão de gênero e de raça, nós não trabalhamos com essa generalidade “as mulheres”, não, nós trabalhamos com as indicações definidas, as mulheres negras. Sempre perguntamos: “de que mulheres estamos falando?” Entendendo a importância que a gente traga as especificidades. 

Quais os desafios de atuar com Políticas Públicas no âmbito da Alimentação para a população negra?

Os desafios para a população negra são imensos na atual situação em que vive nosso país onde as políticas públicas estão sendo devastadas, principalmente no que se refere soberania e segurança alimentar onde o primeiro ato deste governo foi destituir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA Nacional e o que que significa isso: uma população com fome, ela é extremamente vulnerável e esta população que mais sofre, a gente sabe que é a população negra. Em relação a isso nós temos muitos desafios que um deles é este de sobreviver e é preciso então que a gente faça alianças com outros segmentos que estão vinculados a SAN, por exemplo, é preciso trabalhar soberania e segurança alimentar com a saúde, isso é um desafio. Fazer aliança com a educação também, porque antes nós tínhamos como entrar em contato com a população mais carente. 

Atualmente nesse momento de pandemia não temos e online é extremamente difícil, logo, perdemos essa possibilidade de estar junto com as pessoas para poder mobilizar. Então a gente precisa estar em algum observatório de direitos e de justiça que falem e que discutam as dimensões de raça dos movimentos sociais, mulheres negras principalmente, para que a gente possa sempre ter em mente que nós precisamos estar nos mantendo seguras e ter essa dimensão de sempre conversar com as demais mulheres não só negras para que possamos construir estas alianças e trazer a tona as formas, mostrando as diversas formas que tem de desigualdades para que a gente consiga juntar forças com outros segmentos para poder seguir a luta. Nesse momento, nesse quadro político que estamos é impossível se trabalhar de forma isolada, precisamos estar aliadas a outros segmentos pra fazer esta discussão sobre desigualdades, racismo e que tenham pessoas também sensíveis às nossas lutas, então é importantíssimo trabalharmos com justiça, com educação e com saúde pra fazer estas alianças em torno da importância da soberania e segurança alimentar. É importante fazermos diálogos e convergências nas nossas lutas. É prioritário que trabalhemos com saúde, educação, SAN e assistência social. 

Conte-nos sobre a Rede de mulheres negras para Segurança Alimentar e Nutricional – RedeSSAN. Qual o objetivo da organização? Em que regiões ela está presente?

Bem, enquanto RedeSSAN, a Rede de mulheres negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional surge da necessidade de constituição de um espaço para as mulheres negras discutirem ações voltadas para soberania e segurança alimentar e nutricional da população negra em geral e em especial para as mulheres negras. Resgatando e preservando os padrões alimentares e culturais da tradição afro-brasileira a RedeSSAN foi fundada em 21 de março de 2005 e desde então vem atuando para o aprofundamento da reflexão e debate, vem formulando propostas, trocas de experiências e articulação em ações que resultem em políticas públicas. A Rede tem uma atuação bem presente de ações de advocacy em vários locais do país, tendo em vista que é composta por mulheres negras que representam várias regiões brasileiras. A Rede realiza ações de advocacy fortalecendo assim seu crescimento em nível local, estadual, nacional e até mesmo internacional, atuamos no enfrentamento ao racismo, ao sexismo, todas as formas de discriminações realizando estudos, pesquisas, assessorias que contribuem para a modificação das iniquidades de gênero e raça. Fazemos análises, avaliamos e monitoramos políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, principalmente anterior a este governo, tínhamos uma atuação muito forte nas legislações e/ou políticas públicas compensatórias para as mulheres negras.      

A RedeSSAN se propõe a articulação com organizações da sociedade civil para influenciar, interferir na proposição de políticas públicas que garantam o direito humano à alimentação adequada e a soberania e segurança alimentar e nutricional da população negra em geral e em particular as mulheres negras, bem como a realização de encontros para o aprofundamento de reflexões, debates e formulações de propostas, trocas de experiências e a articulação de ações eficazes em garantir o direito à alimentação adequada para população negra fortalecendo assim seu crescimento em nível local, nacional e internacional. A Rede visa a intervenção em espaços de poder e decisão, como também na análise, avaliação e monitoramento dos efeitos das políticas públicas de SAN para a população negra e que as intervenções garantam vinculação à terra e ao território e nessa compreensão busca-se visibilizar as experiências das diversas regiões brasileiras e experiências internacionais  e, principalmente, atuando no enfrentamento ao racismo institucional que impede a garantia de direitos da população negra.

As estratégias da RedeSSAN, a gente vem observando que para viabilizar ações da RedeSSAN é necessário que tenhamos muito presente e muito ativo algumas estratégias. Uma delas é a importância de incentivar intercâmbios e a interajuda entre as entidades da sociedade civil, isso é, a gente vem atuando contundentemente a importância de que a gente ter essas relações com organizações da sociedade civil comprometidas com SAN. Outra coisa também é a análise, o incentivo e promoção de campanhas de prevenção e de apoio e educação no que se refere a SAN das populações vulneráveis, principalmente das populações negras. Outra estratégia é a orientação, acompanhamento e denúncia de qualquer tipo de violação das leis vigentes que prejudiquem o direito humano à alimentação adequada. É importante também as intervenções na legislação pertinente no sentido de conquistar e assegurar novos direitos e/ou alterar dispositivos contrários ou prejudiciais aos direitos humanos à alimentação. A participação e intervenção nos processos de formulação de políticas públicas de SAN para que sejam definidas políticas de enfrentamento às ações de monitoramento da insegurança alimentar. 

Também vemos como importante, o incentivo à participação das integrantes da RedeSSAN em instâncias municipais, estaduais, nacionais e internacionais, é importante essas representações a fim de fortalecer o papel político social da RedeSSAN no desenvolvimento de ações de controle social. Ter atuação forte no controle social e também é nossa preocupação quanto a relacionar dados e indicadores de SAN, estabelecendo assim nexo entre as discriminações de gênero, então essa relação de dados, não só para produzir indicadores mas também observar e contestar aquilo que é publicado. E dar publicidade às informações não só produzidas pela RedeSSAN mas também, as que são publicadas e que não contemplem a população negra, especialmente as mulheres negras. É importante também a gente fazer um relacionamento entre estudos, pesquisas e assessorias para que resultem na contribuição de elaboração de políticas públicas que modificam a iniquidade de gênero e raça. Isso atualmente a gente vem fazendo principalmente com as prefeituras e também análise e avaliação e monitoramento das políticas públicas compensatórias feitas ainda, não em nível nacional, mas em alguns estados e prefeituras, principalmente no que diz respeito às mulheres negras.                          

Em 2019 o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA foi extinto pelo atual governo federal. Quais as consequências de falta desta instância para o cenário de SAN na população negra? 

Com a extinção do CONSEA Nacional e com isso ficamos sem políticas públicas em nível nacional fica evidente que os impactos estão sendo imensos. E mais contundentes para as mulheres negras. O nível de fome, de falta de perspectiva, não ter a garantia do direito humano à alimentação adequada se reflete muito no quadro das mulheres negras, da população negra no geral. Voltamos para o mapa da fome e isso atinge de uma forma contundente as mulheres negras, atualmente, existe um projeto a nível nacional que define quem vai viver e quem vai morrer e nessa pauta de quem vai morrer estamos nós, as mulheres negras. Neste momento nós temos um grande desafio que é estar fazendo o possível para estar em observatórios de direito e justiça, fazer as denúncias, isso cabe às organizações da sociedade civil. De que forma podemos viabilizar isso? Estando relacionados, estando em parceria com outras organizações que trabalhem também, não só organizações negras, mas organizações não negras, organizações de mulheres, organizações que trabalham com direitos humanos para que a gente fortaleça as dimensões raciais e os movimentos sociais para que as mulheres negras principalmente estejam mais seguras para poder garantir a defesa porque neste momento a partir, não só da pandemia, mas no momento que nós entramos na atual gestão [federal] foi deflagrado uma grande insegurança, especialmente insegurança alimentar. Devemos estar fortalecendo os nossos laços para que possamos minimizar, provavelmente não atingiremos a todas, mas tentar minimizar o máximo possível, que esta catástrofe que é a fome, falta de emprego, a insegurança alimentar atinja de forma mais pesada a população negra.             

O que você diria para mulheres mais novas que desejam trilhar um caminho semelhante ao seu?

Para as mulheres mais jovens, na verdade, cada um trilha seu próprio caminho. Cada uma de nós fazemos nosso próprio caminho, evidente que a gente tem referências, assim como nós temos Lélia Gonzalez disse “nossos passos vêm de longe”, então são várias que nós lemos e utilizamos as suas experiências para construir os nossos próprios caminhos. Isso é evidente que acontece com as jovens em função daquilo que elas já ouviram muito em relação às mais velhas vem dizendo então as mais jovens estão empoderadas e construindo o seu protagonismo. É importante, é muito importante dar continuidade a essa luta e eu acredito e vivencio que as jovens estão cada vez mais fazendo este papel de dar continuidade a luta naquele formato que é de jovens com as suas experiências de forma firme e principalmente as jovens vem humanizando essa luta, são as jovens também que elas recebem essas experiências nossas, das mais velhas, mas elas também nos ensinam muito e principalmente elas estão aí para nos mostrar a continuidade da luta e muito seguras do bem viver, estão exercitando muito essa máxima que é o bem viver. Então as jovens, principalmente as jovens negras estão nesse caminho, no caminho de luta pela forma de trabalhar em conjunto e principalmente pelo bem viver.