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Bruna de Oliveira | 22 de julho de 2019

A declaração presidencial na última sexta feira, 20 de julho, é chocante mas não surpreendente. “Não se vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético”, foi uma das afirmações de Bolsonaro em café da manhã com jornalistas. Não é uma surpresa o despreparo teórico e prático da atual gestão federal brasileira. Também, não é surpresa a ignorância de representações políticas sobre desigualdades sociais, especialmente na área da alimentação. Exemplo disso, foi a declaração do prefeito de São Paulo em 2017 que pessoas pobres não possuem hábitos alimentares.

| Leia também: Pobres têm hábitos alimentares? |

O título desse texto é uma afirmação e uma provocação. Existem mais formas de manifestação da fome do que o senso comum nos ensina. Assim como, fome não se restringe a falta de acesso de alimentos em corpos esqueléticos perambulando pelas ruas. Mais uma vez, o senso comum (e preconceituoso) se coloca como empecilho para avanços em políticas públicas de alimentação e nutrição na garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada – DHAA. 

Esta é uma tese que eu defendo com firmeza: todo mundo passa fome no mundo. Não é preciosismo ou discurso populista a diferenciação das diversas fomes que pintam cenas alimentares dos povos no mundo. Você já pensou sobre isso?

Se afirmamos que a maioria das pessoas no globo passam fome hoje, você acreditaria? Por um lado você pode concordar, pensando que fome é sinônimo de apetite e/ou vontade de comer, todo mundo tem fome todos os dias. Este é um tipo de fome, é definido como fome aguda. Ok, até aí, tudo certo. Quando estamos com fome, abrimos a geladeira de casa ou vamos à uma padaria e saciamos nossa vontade.

Precisamos lembrar que não são todas as pessoas que possuem recursos para adquirir seu alimento. Nesse sentido, se uma pessoa fica com fome por muito tempo e/ou não sacia em quantidade suficiente seu apetite e necessidades biológicas de manutenção da vida, essa fome é chamada crônica. Existe ainda uma terceira hipótese com duas situações: eu tenho algum recurso para comprar comida, mas não o suficiente para consumir várias opções, ou; eu tenho recursos para comprar a comida que eu quiser e opto por consumir alimentos que não tomem muito do pouco tempo de uma rotina agitada e estressante em uma metrópole.

Essas duas histórias contam com um elemento em comum: uma alimentação não adequada. Hábitos alimentares monótonos e/ou em quantidade insuficiente para suprir necessidades nutricionais de uma pessoa gera o que estudiosos chamam de fome oculta. As fomes oculta e crônica são estados nutricionais que se desdobram tanto por um viés da desnutrição, quanto pode se expressar em subnutrição ou obesidade.

Três fotografias de um mesmo fenômeno, três fotografias que retratam as fomes do mundo. Quem dera que as lutas de combate à fome ocorresse apenas no âmbito da fome aguda! Assim, entramos em um “diálogo perigoso” como diria Josué de Castro, médico profeta que teve a ousadia de marcar a sociedade com seus estudos sobre fome no Brasil. Há 72 anos, em sua obra Geografia da fome, Josué demonstrou a influência dos fatores socioeconômicos sobre os fatores biológicos da nossa população, através da deficiência alimentar e da predominância de interesses privados sob os coletivos.  

A fome não se limita a uma enfermidade biológica, mas sim é uma doença social fruto da má distribuição de alimentos no globo; do sistema agroalimentar super mecanizado e dependente de agroquímicos, e; de uma indústria alimentícia preocupada no excessivo consumo de seus produtos, muitas vezes, não saudáveis. Em suma, a fome é um desdobramento social da forma como a cadeia de produção de alimentos opera hoje, embasada nos princípios do capitalismo corporativista, sistema político econômico que consome nossos dias.

É importante ressaltar que ambos os quadros (obesidade e desnutrição) são graves e evocam múltiplos olhares para o planejamento e execução de estratégias que em uma primeira instância os reduzam e – em melhores perspectivas – efetivem sua devida erradicação. Esse adoecimento generalizado é gerado em decorrência de inúmeros fatores, tais como o processamento de alimentos pela indústria alimentícia, o uso excessivo e descontrolável de agrotóxicos na agricultura e as monoculturas que massificam e monotonizam a alimentação das pessoas.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO – Food and Agriculture Organization) estima que cerca de 820 milhões de pessoas em todo o mundo não tiveram acesso suficiente a alimentos em 2018, frente a 811 milhões no ano anterior, no terceiro ano consecutivo de aumento (versão em inglês). Especialmente na América Latina e no Caribe, estima-se que a fome afeta 42,5 milhões de pessoas

Queda livre

Em 2014, o Brasil saiu do mapa da fome segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO – Food and Agriculture Organization). Isso significa que menos de 5% da população brasileira ainda encontraram-se com seu direito ainda violado. Você pode entender como políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA; Política Nacional de Alimentação Escolar – PNAN; e, o fortalecimento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA desde sua retomada em 2003 e posterior extinção neste ano. Acesse aqui o relatório que descreve as iniciativas brasileiras para combate à fome consideradas relevantes e replicáveis para outros países. Isso não é pouca coisa, ta okey? 

Lamentavelmente, em 2018, retornamos a esse diagrama que apresenta o prognóstico não positivo para a Segurança Alimentar e Nutricional deste paí. 5,2 milhões de brasileiros e brasileiras não tem o que comer todos os dias segundo este relatório.   

| Leia também: ‘Sem merenda: quando férias escolares significam fome no Brasil’ – BBC |

Preciso pegar um fôlego para continuar… são tantos elementos que explicitam a imensidão de direitos violados não somente de acesso à alimentos, mas em diferentes elos do sistema alimentar atual suprimidos pela avalanche da bancada ruralista e os defensores do agronegócio brasileiro.

Em 200 dias, o governo Bolsonaro autorizou o uso de mais de 239 agrotóxicos no mercado, isso é mais do que países europeus autorizaram ao longo de 8 anos. Há muitas pesquisas que apresentam os difíceis enredos enfrentados por agricultores familiares, trabalhadores rurais, povos e comunidades tradicionais. Depois do Dossiê Abrasco, a publicação mais recente que denunciam o impacto dos agrotóxicos no país é o Atlas Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia, de autoria da pesquisadora Larissa Lambardi. Os agrotóxicos fazem parte de um pacote tecnológico que mata diariamente, seja no campo, seja na cidade; seja a fome que for: pela falta ou pela contaminação; pela escassez ou pelo excesso artificial que passa deixando resíduos no organismo humano e planetário.

Todos passamos fome. Tão drástica quanto a inanição biológica é a cabeça vazia de uma consciência comunitária mínima que abre margem para práticas tão perversas este governo tem feito a este país.