Traduzido por: Mariana Pianissolla
Este texto é uma parte da PUBLICAÇÃO ‘NUS – Fighting Poverty, Hunger and Malnutrition with Neglected and Underutilized Species’ , publicação da organização de pesquisa para o desenvolvimento ‘Bioviversity International’ em 2003. Versão original disponível aqui.
Introdução
“Natureza é recompensa” é uma expressão que não precisa de definição. É a natureza que nos alimenta, nos veste, nos esquenta, nos abriga, define nossos meios de subsistências e subsidia a cultura das populações humanas. Toda essa recompensa descansa na vida do planeta, a vida de todos os animais, incluindo os humanos, dependem da natureza. Aproximadamente 30.000 espécies de plantas já foram identificadas, mais de 7.000 delas já foram usadas na história da humanidade para alimentação (FAO, 1998). No presente, porém, não mais do que 150 espécies são comercialmente cultivadas e, dessas, apenas 103 garantem 90% das calorias da dieta humana². Apenas quatro delas (arroz, trigo, milho e batata) somam quase 60% do suprimento de energia para os humanos³.
Quase todos os esforços da Revolução Verde dos anos 1960 aos anos 1980 focaram no desenvolvimento das grandes culturas agrícolas básicas. Entretanto, dentro da perspectiva da sustentabilidade e segurança alimentar, contar com uma estreita base de alimentos faz com que nosso fornecimento de comida seja extremamente vulnerável. Basear nossa dieta num pequeno número de principais culturas têm implicações na segurança alimentar e nutricional. A falta de diversidade genética deixa nossa agricultura vulnerável à pragas, doenças e estresse abiótico. Neste mundo interconectado, a variação na devastação irlandesa da batata do século XIX teria inúmeras e desastrosas consequências. O antegosto do que pode acontecer foi experimentado nos anos 1970, quando variedades híbridas de milho se mostraram sensíveis a ferrugem da folha, em 1930 quando fungos atacaram o taro cultivado em Samoa, e em 1875 quando devastaram a plantação de café do Sri Lanka. Uma corrente global que ameaça a produção de trigo é a ferrugem. Essa agressiva e muito destrutiva doença apareceu pela primeira vez na Uganda, mas se espalhou pelo Oriente Médio, destruindo plantações de trigo. Isso é ameaçador para os países produtores de trigo onde as variedades resistentes estão em falta. Para prevenir essa e outras calamidades na produção de alimentos, é claro que é preciso manter a diversidade dentro e entre culturas no nosso sistema de produção.
Como consequência das vantagens comerciais das monoculturas e do alto rendimento dos melhoramentos híbridos, a diversidade de espécies – caracterizada por culturas locais, variedades tradicionais e menores – está sendo negligenciada por agrônomos, bem como por serviços de extensão. Em muitas áreas elas estão sendo totalmente perdidas, juntamente com o conhecimento tradicional do seu cultivo e uso.
Ao mesmo tempo, o mundo sofre com desnutrição, pobreza, degradação dos ecossistemas e impactos no clima, sendo assim, a produção agrícola pede urgentemente por esforços para as culturas negligenciadas e menores, semelhantes ao suporte já feito as principais lavouras. Está cada vez mais claro que ações mais ousadas e consistentes são necessárias para ampliar a cesta de alimentos do mundo apoiando o desenvolvimento das culturas tradicionais marginalizadas pelas pesquisas atuais e políticas em agricultura.
Internacionalmente, existe um aumento do interesse em novos alimentos e outros produtos que podem contribuir em novas formas para saúde e nutrição humanas. Esse interesse pode ser explorado para desenvolver mercados para culturas não tradicionais, onde comunidades pobres podem ser beneficiadas, fornecendo incentivos para produtores que plantam essas culturas. Agricultura deve ir além das tecnologias da Revolução Verde do último meio século, que foram baseadas no melhoramento genético e no aumento do rendimento das culturas básicas, porém com um alto custo. Esses aumentos não permitiram que os países reduzissem a fome e também resultaram no uso inapropriado e excessivo de agrotóxicos, desperdício de água nos esquemas de irrigação, perda dos benefícios da biodiversidade, poluição do solo e da água, e significante redução da diversidade das lavouras.
O que são as NUS? E por que são importantes?
Espécies agrícolas que não estão entre as maiores culturas básicas geralmente são chamadas de “neglected and underutilized species” (NUS) – espécies negligenciadas e subutilizadas, em tradução livre -, também conhecidas como culturas “órfãs”.
O conceito de NUS remete a espécies de plantas úteis, mas que são marginalizadas ou completamente ignoradas pelos pesquisadores, produtores e políticos. Elas não são consideradas mercadorias e fazem parte de um grande e diverso grupo com milhares de espécies domesticadas, semi-domesticadas e selvagens. Elas podem se adaptar localmente como as espécies de florestas não madeireiras. A designação NUS também é fluída, como quando uma cultura é simultaneamente estabelecida em um país e negligenciada em outro. Em alguns países estatísticas e pesquisas não distinguem entre NUS e outras culturas.
NUS diferem de culturas básicas em formas fundamentais. Elas tendem a ser gerenciadas por sistemas tradicionais, usando fontes de sementes informais e envolvendo um forte elemento de gênero. O seu processo pode ser trabalhoso, gradual e com embalagens primitivas, além de serem produtos para mercados locais com limitações para o envolvimento de grandes empreendimentos. Sendo por muito tempo negligenciada pela agricultura convencional por razões de variedade agronômica, genética, econômica, social e cultura, hoje essas culturas estão recebendo constante reconhecimento por causa do seu potencial papel para atenuar os riscos do sistema de produção agrícola. Nos últimos 10 anos ou menos, um crescente número de projetos vem direcionando sua atenção para a importância das NUS em beneficiar a nutrição, gerar renda, manter a saúde dos ecossistemas e empoderar os pobres e marginalizados, assim como, promover a diversidade cultural.
Conclusão
Existe uma necessidade urgente de ampliar a cesta de alimentos pelo mundo apoiando o desenvolvimento de culturas tradicionais negligenciadas e marginalizadas a partir de pesquisas e políticas agrícolas.
Intervenções para apoiar as NUS são muitas e incluem:
O desenvolvimento de variedades melhores;
Melhorias nas práticas de cultivo;
Elevar o investimento em tecnologias;
Melhor acesso dos produtores aos mercados;
Validação e promoção dos benefícios à saúde;
Manutenção mais eficaz da diversidade genética e cultural nas fazendas;
Políticas de nível nacional e internacional que apoiem a conservação e o uso dessas culturas.
As NUS, como parte da cesta de alimentos da humanidade afiada através de milênios de experimentação agrícola e transmissão cultural de conhecimentos através das gerações, são uma riqueza que merece ser conservada cuidadosamente pelos muitos benefícios que traz para a população mundial. Através de ações internacionais, locais e nacionais, este recurso pode ser transmitido para as gerações futuras e usado para melhorar o bem-estar da humanidade.
Referências:
² Prescott-Allen and Prescott-Allen 1990
³ http://www.fao.org/biodiversity/components/plants/it/
Os artigos deste editorial foram contribuições de pesquisadores e pesquisadoras concedida ao Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares – OBHA para a 5ª edição temática da sessão Fome de Saber que foi lançada em 2018. O OBHA é um projeto do Programa de Alimentação Nutrição e Cultura – Palin da Gerência Regional de Brasília da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz Brasília.